terça-feira

A FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO

POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. (Trad. Oscar Mendes e Milton Amado)
São Paulo: Globo, 1999. 3. Ed. revista.

Charles Dickens, numa nota que agora está à minha fren­te, aludindo a uma análise que fiz, certa vez, do mecanismo, de Barnaby Rudge, diz "De passagem, sabe que Godwin escre­veu seu Caleb Williams de trás para diante? Envolveu primei­ramente seu herói numa teia de dificuldades, que formava o segundo volume, e depois, para fazer o primeiro, ficou procu­rando um modo de explicar o que havia sido feito".
Não posso pensar que esse seja o modo preciso de proce­der de Godwin, e, de fato, o que ele próprio confessa não está completamente de acordo com a idéia do sr. Dickens. Mas o autor de Caleb Williams era muito bom artista para deixar de perceber a vantagem procedente de um processo, pelo menos, um tanto semelhante. Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas desse nome, ser elaboradas em rela­ção ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou cau­salidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção.
Há um erro radical, acho, na maneira habitual de cons­truir uma ficção. Ou a história nos concede uma tese, ou uma é sugerida por um incidente do dia, ou, no melhor caso, o autor senta-se para trabalhar na combinação de acontecimen­tos impressionantes, para formar simplesmente a base da narrativa, planejando, geralmente, encher de descrições, diá­logos ou comentários autorais todas as lacunas do fato ou da ação que se possam tomar aparentes, de página a página.
Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo sempre a originalidade em vista, pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão evidente e tão facilmente alcançável, digo-me, em primeiro lugar: "Dentre os inúmeros efeitos, ou impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na ocasião atual escolher?" Tendo escolhi­do primeiro um assunto novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou com o tom - com os incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom - depois de procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção do efeito.
Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista, por um autor que quisesse, isto é, que pudesse, pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acaba­mento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos escritores, especialmente os poe­tas, preferem ter por entendido que compõem por meio de urna espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalho­sas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcança­dos no último instante, para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as imagina­ções plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário.
Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o caso em que um autor esteja absolutamente em condições de reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram atingidas. As sugestões, em geral tendo-se erguido em tumulto, são seguidas e esquecidas de maneira semelhante.
Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima aludida nem1 em qualquer tempo, tive a menor dificuldade em relembrar os passos progressivos de qualquer de minhas composições; e, desde que o interesse de uma análise, ou reconstrução, tal como a que tenho considerado um desidera­to, é inteiramente independente de qualquer interesse real ou imaginário na coisa analisada, não se deve encarar como falta de decoro de minha parte, mostrar o modus operandi pelo qual uma de minhas próprias obras se completou. Escolhi “O Corvo”, como a mais geralmente conhecida. É meu desíg­nio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático.
Deixamos de parte, por ser sem importância para o poema per se, a circunstância, ou digamos, a necessidade que, em primeiro lugar, deu origem à intenção de compor um poema que, a um tempo, agradasse ao gosto do público e da crítica.
Comecemos, pois, a partir dessa intenção.
A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interfe­rem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas, visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vanta­gem que contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de breves eleitos poéticos. É desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves. Por essa razão, pelo menos metade do Paraíso Perdido é essencialmente prosa, pois uma sucessão de emoções poéticas se intercala, inevitavelmente, de depressões cor­respondentes; e o conjunto se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico, a totalidade, ou unidade de efeito.
Parece evidente, pois, que há um limite distinto, no que se refere à extensão para todas as obras de arte literária, o limite de uma só assentada, e que embora em certas espécies de composição em prosa, tais como Robinson Crusoe (que não exige unidade), esse limite pode ser vantajosamente supera­do, nunca poderá ser ele ultrapassado convenientemente por um poema. Dentro desse limite, a extensão de um poema deve ser calculada, para conservar relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir. Pois é claro que a brevi­dade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pre­tendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente1 para a produção de qual­quer efeito.
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação, que eu não colocava acima do gosto popu­lar nem abaixo do gosto crítico, alcancei logo o que imaginei ser a extensão, conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de cerca de cem versos. De fato, ele tem cento e oito.
Meu pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma impressão, ou efeito, a ser obtido; e aqui bem posso observar que, através de toda a elaboração, tive firmemente em vista o desejo de tornar a obra apreciável por todos. Seria levado longe demais de meu assunto imediato, se fosse demonstrar um ponto sobre o qual tenho repetidamente insistido e que, entre poetas, não tem a menor necessidade de demonstração; refiro-me ao ponto de que a Beleza é a única província legíti­ma do poema. Poucas palavras, contudo, para elucidar meu verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos tiveram inclinação para interpretar mal. O prazer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais enlevante e o mais puro é, creio eu, encontrado na contemplação do belo. Quando, de fato, os homens falam de Beleza, querem exprimir, precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas um efeito; referem-­se, em suma, precisamente àquela intensa e pura elevação da alma - e não da inteligência ou do coração - de que venho falando e que se experimenta em conseqüência da contem­plação do Belo. Ora, designo a Beleza como a província do poema, simplesmente porque é evidente regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los. E ninguém houve ainda bastante tolo, para negar que a elevação especial a que aludi, é mais prontamente atin­gida num poema. Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfa­ção do intelecto, e ao objetivo Paixão, ou a excitação do cora­ção, são eles muito mais prontamente atingíveis na prosa, embora também, até certa extensão, na poesia. A Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a Paixão uma familiaridade (o verdadeiramente apaixonado me compreenderá), que são inteiramente antagônicas daquela Beleza que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável da alma. De modo algum se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão e mesmo a verdade não possam ser introduzidas, proveitosamente introduzidas até, num poema, porque elas podem servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discordâncias em música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista sempre se esforçara, em primeiro lugar, para harmonizá-las, na submissão conveniente ao alvo predominante, e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essência do poema.
Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legi­timo de todos os tons poéticos.
Estando assim determinadas a extensão, a província e o tom, entreguei-me à indução normal, a fim de obter algum efeito artístico agudo que me pudesse servir de nota-chave na construção do poema, algum eixo sobre o qual toda a estrutura devesse girar. Passando cuidadosamente em revis­ta todos os efeitos artísticos usuais, ou, mais propriamente, situações, no sentido teatral não deixei de perceber de ime­diato que nenhum tinha sido tão universalmente empregado como o do refrão. A universalidade desse emprego bastou para me assegurar de seu valor intrínseco e evitou-me a necessidade de submetê-lo à análise. Considerei-o, contudo, em relação a sua suscetibilidade de aperfeiçoamento e vi logo que ainda se achava num estado primitivo. Como é comu­mente usado, o refrão poético, ou estribilho, não só se limita ao verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da monotonia, tanto no som., como na idéia. O prazer somente se extrai pelo sentido de identidade, de repetição. Resolvi fazer diversamente, e assim elevar o efeito, aderindo em geral à monotonia do som, porém continuamente variando na da idéia: isto é, decidi produzir continuamente novos efei­tos, pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na maior parte das vezes, invariável.
Assentados tais pontos, passei a pensar sobre a nature­za de meu refrão. Desde que sua aplicação deveria ser repetidamente variada, era claro que esse refrão deveria ser breve, pois haveria insuperáveis dificuldades na aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à brevida­de da sentença estaria, naturalmente, a facilidade da varia­ção. Isso imediatamente me levou a uma só palavra como o melhor refrão.
Suscitou-se, então, a questão do caráter da palavra. Tendo-me inclinado por um refrão, a divisão do poema em estância surgia, naturalmente, como corolário, formando o refrão o fecho de cada estância. Não cabia dúvida de que tal fecho, para ter força, devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada; e tais considerações inevitavelmente me leva­ram ao o prolongado, como a mais sonora vogal, em conexão com o r como a consoante mais aproveitável.
Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que encerrasse esse som e, ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a melancolia predeterminada corno o tom do poema. Em tal busca, teria sido absolutamente impossível que escapasse a palavra "never more". De fato, foi ela a primeira que se apresentou.
O desiderato seguinte era um pretexto para o uso con­tinuo da palavra "never more" (nunca mais). Observando a dificuldade que já encontrara em inventar uma razão suficientemente plausível para sua continua repetição, não deixei de perceber que essa dificuldade nascia somente da presunção de que a palavra devia ser contínua ou monotonamente pronunciada por um ser humano. Não deixei de perceber, em suma, que a dificuldade estava em conciliar essa monotonia com o exercício da razão por parte da cria­tura que repetisse a palavra. Daí, pois, ergueu-se imediata­mente a idéia de uma criatura não racional, capaz de falar, e muito naturalmente foi sugerido de início, a de um papa­gaio, que foi logo substituída pela de um Corvo, como igualmente capaz de falar e infinitamente mais em relação com o tom pretendido.
Eu já havia chegado à idéia de um Corvo, a ave do mau agouro, repetindo monotonamente a expressão "Nunca mais", na conclusão de cada estância de um poema de tom melancólico e extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais perdendo de vista o objetivo - o superlativo ou a perfeição em todos os pontos -, perguntei-me: "De todos os temas melan­cólicos, qual, segundo a compreensão universal da humani­dade, é o mais melancólico?" A Morte - foi a resposta eviden­te. "E quando", insisti, "esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético?" Pelo que já explanei, um tanto prolon­gadamente, a resposta também aí era evidente: “Quando ele se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor”.
Tinha, pois, de combinar as duas idéias, a de um aman­te lamentando sua morta amada e a de um Corvo continuamente repetindo as palavras "Nunca mais". E tinha de com­biná-las tendo em mente meu propósito de variar, a cada vez, a aplicação da palavra repetida, mas a única maneira inteligí­vel de tal combinação era a de imaginar o Corvo empregan­do a palavra, em resposta às perguntas do amante. E então aí vi imediatamente, a oportunidade concedida para o efeito do qual eu tinha estado dependente, isto é, o efeito da varia­ção da aplicação. Vi que poderia fazer da primeira pergunta, apresentada pelo amante - a primeira pergunta a que o Corvo deveria responder "Nunca mais" -, que poderia fazer dessa primeira pergunta um lugar-comum da segunda uma expressão menos comum, da terceira ainda menos, e assim por diante, até que o amante, arrancado de sua displicência primitiva, pelo caráter melancólico da própria palavra, pela sua freqüente repetição e pela consideração da sinistra repu­tação da ave que a pronunciava, fosse afinal excitado à superstição e loucamente fizesse perguntas de espécie muito diversa. Perguntas cujas respostas lhe interessavam apaixo­nadamente ao coração, fazendo-as num misto de superstição e daquela espécie de desespero que se deleita na própria tor­tura, fazendo-as não porque propriamente acreditasse no caráter profético, ou demoníaco da ave (que a razão lhe diz estar apenas repetindo uma lição aprendida rotineiramente), mas porque experimentaria um frenético prazer em organi­zar suas perguntas para recebei, do esperado "Nunca mais", a mais deliciosa, porque a mais intolerável, das tristezas. Percebendo a oportunidade que assim se me oferecia, ou, mais estritamente, que se me impunha no desenrolar da composição, estabeleci na mente o climax, ou a pergunta con­clusiva: aquela pergunta de que o "Nunca mais" seria, pela última vez, a resposta; aquela pergunta em resposta à qual o "Nunca mais" envolveria a máxima concentração possível de tristeza e de desespero.
Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo pelo fim por que devem começar todas as obras de arte, porque foi nesse ponto de minhas considerações prévias que, pela primei­ra vez, tomei do papel e da pena para compor a estância:

“Profeta!” - exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave
[infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus, que adoram todos os mortais,
fala se esta alma, sob o guante atroz da dor, no Éden distante
verá a deusa fulgurante a quem, nos céus, chamam Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem, nos céus, chamam
[Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”.
Compus essa estância, nesse ponto, primeiramente por­que, estabelecendo o ponto culminante, melhor poderia variar e graduar, no que se refere à seriedade e importância, as perguntas precedentes do amante e, em segundo lugar, porque poderia definitivamente assentar o ritmo, o metro, a extensão e o arranjo geral da estância, assim como graduar as estâncias que a deviam preceder, para que nenhuma delas pudesse ultrapassá-la em seu efeito rítmico. Tivesse eu sido capaz, na composição subseqüente, de construir estâncias mais vigorosas, não teria hesitações em enfraque­cê-las propositadamente, para que não interferissem com o efeito culminante.
E aqui bem posso dizer algumas palavras sobre versifi­cação. Meu primeiro objetivo, como de costume, era a origi­nalidade. A amplitude com que esta tem sido negligenciada na versificação é uma das coisas mais inexplicáveis do mundo. Admitindo-se que haja pequena possibilidade de variedade no ritmo, permanece claro, porém, que as varieda­des possíveis do metro e da estância são absolutamente infi­nitas, e contudo, durante séculos, nenhum homem ,em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer alguma coisa original. A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encon­trada, ela, em geral tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.
Sem dúvida, não pretendo que haja qualquer originali­dade, quer no ritmo, quer no metro de "O Corvo". O primei­ro é trocaico, o segundo é octâmetro acatalético, alternando-­se com um heptâmetro catalético, repetido no refrão do quin­to verso e terminando com um tetâmetro catalético. Falando menos pedantescamente, o pé empregado no poema (tro­queu) consiste em uma sílaba longa, seguida por uma curta; o primeiro verso da estância compõe-se de oito desses pés; o segundo, de sete e meio (de fato, dois terços), o terceiro de oito, o quarto de sete e meio o quinto idem, o sexto de três e meio. Ora, cada um desses versos, tomado separadamente, tem sido empregado antes, mas a originalidade que "O Corvo" tem está em sua combinação na estância, nada já havendo sido tentado que mesmo remotamente se aproxi­masse dessa combinação. O efeito dessa originalidade de combinação é ajudado por outros efeitos incomuns, alguns inteiramente novos, oriundos de uma ampliação da aplica­ção dos princípios de rima e de aliteração.
O ponto seguinte, a ser considerado, era o modo de jun­tar o amante e o Corvo: e o primeiro ramo dessa considera­ção era o local. Para isso, a sugestão mais natural seria a de uma floresta, ou a dos campos; mas sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessá­ria para o efeito do incidente insulado e tem a força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral para conservar concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera unidade de lugar.
Determinei, então, colocar o amante em seu quarto - num quarto para ele sagrado, pela recordação daquela que o freqüentara. O quarto é apresentado como ricamente mobi­liado, isso na simples continuação das idéias, que eu já tinha explanado, a respeito da Beleza como a única verdadeira tese poética.
Tendo sido assim determinado o local, tinha agora de introduzir a ave e o pensamento de fazê-lo pela janela era inevitável. A idéia de fazer o amante supor, em primeiro lugar, que o tatalar das asas da ave contra o postigo é um "batido" à porta, originou-se de um desejo de aumentar, pela prolongação, a curiosidade do leitor, e de um desejo de admi­tir o efeito casual surgindo do fato de o amante abrir a porta, achar tudo escuro e depois aceitar a semifantasia de que fora o espírito de sua amada que batera.
Fiz a noite tempestuosa, primeiro para explicar por que o Corvo procurava entrar e, em segundo lugar, para efeito de contraste com a serenidade (física) que reinava dentro do quarto.
Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva, também para efeito de contraste entre o mármore e a plumagem - sendo entendido que o busto foi absolutamente sugerido pelo pássa­ro - e escolhido o busto de Minerva, primeiro, para combinar mais com a erudição do amante e, em segundo lugar, pela sonoridade da própria palavra Minerva.
Pelo meio do poema, também, aproveitei-me da força do contraste, tendo em vista aprofundar a impressão derradeira. Por exemplo, um ar do fantástico - aproximando-se o mais possível do burlesco - é dado à entrada do Corvo. Ele entra "em tumulto, a esvoaçar".

Como um fidalgo passo, augusto, e sem notar sequer
[meu susto,
adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de
[Minerva.

Nas duas estâncias que se seguem, esse desígnio é ainda mais evidentemente solicitado:

Ao ver da ave austera e escura a soteníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus
[ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” - então lhe
[digo -
"não tens pavor; fala comigo, alma da noite, espectro
torvo, qual é o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu
[no inferno torvo!"

E o Corvo disse: "Nunca mais".

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais,
Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no
[presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua
[porta,
uma ave (ou fera, pouco importa) empoleirada, em sua porta,
e que se chama "Nunca mais".
Sendo assim assegurado o efeito do desenvolvimento, imediatamente troquei o fantástico por um tom da mais pro­funda seriedade, começando esse tom na estância imediata­mente seguinte à última citada, com o verso:

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave [sombria etc.

Daí para a frente, o amante não mais zomba, não mais vê qualquer coisa de fantástico na conduta do Corvo. Fala dele como “horrendo, torvo, ominoso e antigo”, sentindo "da ave, incandescente, o olhar" queimá-lo "fixamente". Essa revolu­ção do pensamento, ou da imaginação, da parte do aman­te, destina-se a provocar uma semelhante da parte do lei­tor, levar o espírito a uma disposição própria para o desen­lace, que é agora completado tão rápida e diretamente quanto possível.
Com o desenlace conveniente, com a resposta do Corvo, "Nunca mais", à pergunta final do amante, sobre se ele encontraria sua amada em um outro mundo, o poema, em sua fase evidente, que é a da simples narrativa, pode ser con­siderado como completo. Até aí, tudo está dentro dos limites do explicável do real. Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer apenas "Nunca mais" e tendo escapado à vigi­lância de seu dono, é levado à meia-noite, em meio à violên­cia de uma tempestade, a buscar entrada numa janela, pela qual se vê ainda a luz brilhar: a janela do quarto de um estu­dante, ocupado entre folhear um volume e sonhar com uma adorada amante morta. Sendo aberta a janela, ao tumultuar das asas da ave, esta pousa no sítio mais conveniente, fora do alcance imediato do estudante, que, divertido pelo incidente e pela extravagância das maneiras do visitante, pergunta-lhe, por brincadeira e sem esperar resposta, por seu nome. O Corvo, interrogado, responde com seu costumeiro "Nunca mais", frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante, que, dando expressão, em voz alta, a certos pensa­mentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela repetição do "Nunca mais" do Corvo. O estudante adi­vinha então a real causa do acontecimento, mas é impelido, como já explanei, pela sede humana de autotortura e, em parte, pela superstição, a propor questões tais à ave que só lhe trarão, ao amante, o máximo da volúpia da tristeza, gra­ças á esperada frase "Nunca mais". Levando até o extremo essa autotortura, a narração, naquilo que denominei sua fase primeira ou evidente, tem um fim natural e até ai não ultra­passou os limites do real.
Mas nos assuntos assim manejados, por mais agudamente que o sejam, por mais vivas riquezas de incidentes que possuam, há sempre certa dureza ou nudez que repele o olhar artístico. Duas coisas são invariavelmente requeridas: primeiramente, certa soma de complexidade, ou, mais pro­priamente, de adaptação; e, em segundo lugar, certa soma de sugestividade, certa subcorrente embora indefinida de senti­do. Esta última, afinal, é que dá a uma obra de arte tanto daquela riqueza (para tirar da conversação cotidiana um termo eficaz) que gostamos demais de confundir com o ideal. É o excesso do sentido sugerido1 é torná-lo a corrente superior, em vez da subcorrente do tema, que transforma em prosa (e prosa da mais chata espécie) a assim chamada poesia dos assim chamados transcendentalistas.
Mantendo essas opiniões, ajuntei duas estâncias que concluem o poema, sendo sua sugestividade destinada a penetrar toda a narrativa que as precede. A subcorrente de significação torna-se primeiramente evidente no verso

"Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa
[porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"
Deve-se observar que as palavras "o peito" envolvem a primeira expressão metafórica no poema. Elas, com a respos­ta "Nunca mais", dispõem a mente a buscar uma moral em tudo quanto foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o Corvo como simbólico, mas não é senão nos versos finais da última estância que se permite distinta­mente ser vista a intenção de torná-lo um emblema da Recordação dolorosa e infindável:
E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas
a fio, sobre o alvo busto de Minerva, inerte sempre
[em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em
[sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua
[sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma e,
[presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!




domingo

VOO RUMO ÀS ASAS - VALMOR BORDIN

O livro VOO RUMO ÀS ASAS, do médico psiquiatra Valmor Bordin, como bem diz Simone Schhlottfeltd, da Editora Nova Prova, "trata-se de uma preciosidade, não só à Psiquiatria e a todos que a ela estão vinculados, como também ao leitor capaz de se sensibilizar diante do mais puro e verdadeiro sentimento humano, expresso em cada linha desta obra, capaz de perceber que a arte e a loucura andam de mãos dadas, que é impossível vislumbrar a linha limítrofe entre uma e outra, e, finalmente, que uma não sobreviveria sem a outra."
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A quem como eu teve Valmor Bordin como colega de oficina não existe novidade, apenas confirmação de seu talento, e de sua sensibilidade.
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''A loucura é um fio de alta tensão onde pousa uma andorinha, com um raminho de grama preso ao bico e as asinhas samprando, com suas penas mansas, longe do ninho. Nestas linhas, nenhuma certeza, apenas divagações sobre o delírio, com ou sem aspas. Para quem quiser entrar neste barco e depois sair, basta ser humano. Afinal,"louco é sempre o outro". Espero não estar falando sozinho." (Valmor Bordin)
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Valmor, com certeza não estás...




"Não toque esta música triste, eu não posso ouvir
NA SURDINA O CANTO RÓI OS OSSOS"

quarta-feira


DECÁLOGO DO PERFEITO CONTISTA

Sergio Faraco e Vera Moreira lançaram pela L&PM um "novo" Decálogo do Perfeito Contista, de Horácio Quiroga, trazendo a visão de alguns escritores e intelectuais brasileiros sobre cada um dos preceitos já apontados em 1927, pelo genial escritor uruguaio. No livro, ainda uma bibliografia básica recomendada para o oficio da escrita.
Nesta bibliografia há muita coisa de dominio público já na rede e que, compartilho com os interessados como forma de melhor ordenar conhecimentos. Espero que seja útil para alguém mais.

EXCERTOS DE A PERSONAGEM

Beth Brait
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A personagem e a tradição crítica.
No princípio está Aristóteles

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Tanto o conceito de personagem quanto a sua função no discurso estão diretamente vinculados não apenas à mobilidade criativa do fazer artístico, mas especialmente à reflexão a respeito dos modos de existência e do destino desse fazer. Pensar a questão da personagem significa, necessariamente, percorrer alguns caminhos trilhados pela crítica no sentido de definir seu objeto e buscar o instrumental adequado à análise e à fundamentação dos juízos acerca desse objeto.
Já foi dito e impresso, muitas vezes, que é inevitável iniciar uma reflexão teórica sem voltar o olhar para a Grécia antiga e para os pensadores que impulsionaram o conhecimento. No caso da personagem de ficção, é também nesse momento que se vai encontrar o início de uma tradição voltada para o conhecimento e a reflexão dessa instância narrativa.
Dos teóricos conhecidos, Aristóteles é o primeiro a tocar nesse problema. Ao discutir as manifestações da poesia lírica, épica e dramática, esse pensador grego levantou alguns aspectos importantes, que marcaram e marcam até hoje o conceito de personagem e sua função na literatura.
Um aspecto relevante desses estudos é o que diz respeito à semelhança existente entre personagem e pessoa, conceito centrado na discutida, e raras vezes compreendida, mimesis aristotélica. Durante muito tempo, o termo mimesis foi traduzido como sendo "imitação do real", como referência direta à elaboração de uma semelhança ou imagem da natureza. Essa concepção, até certo ponto empobrecedora das afirmações contidas no discurso aristotélico, marcou por longo tempo as tentativas de conceituação, caracterização e valoração da personagem.
Na verdade, o que alguns críticos contemporâneos têm procurado demonstrar é que uma leitura mais aprofundada e menos marcada do conceito de arte, e, conseqüentemente, do conceito de mimesis contidos na Poética, revela o quanto Aristóteles estava preocupado não só com aquilo que é "imitado" ou "refletido" num poema, mas também com a própria maneira de ser do poema e com os meios utilizados pelo poeta para a elaboração de sua obra.
Aristóteles aponta, entre outras coisas, para dois aspectos essenciais:

- a personagem como reflexo da pessoa humana;

- a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto.
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Perseguindo a personagem
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Os estudos empreendidos por Aristóteles serviram de modelo, num certo sentido, à concepção de personagem que vigorou até meados do século XVIII, momento em que o conceito de mimesis flagrado no pensador grego e manipulado por seus interpretadores começa a ser combatido. Durante esse longo período, todos os teóricos que trataram de questões ligadas à arte, incluindo-se aí o problema da personagem, foram influenciados pela visão aristotélica e mais particularmente pela tese ético-representativa encerrada em sua teoria.
No início desse percurso situa-se Horácio, o poeta latino que em sua Ars poetica divulga as idéias aristotélicas e reitera suas proposições. No que diz respeito à personagem, Horácio associa o aspecto de entretenimento, contido pela literatura, à sua função pedagógica, e consegue com isso enfatizar o aspecto moral desses seres fictícios. De certo modo, a concepção de personagem divulgada pelo pensador latino contribui de forma significativa para que se acentue o conceito de imitação propiciado pelo termo mimesis para a reinstauração da finalidade utilitarista da arte, entrevista em Aristóteles.
Apegado às relações existentes entre a arte e a ética, Horácio concebe a personagem não apenas como reprodução dos seres vivos, mas como modelos a serem imitados, identificando personagem-homem e virtude e advogando para esses seres o estatuto de moralidade humana que supõe imitação.


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Os novos ares dos séculos XVIII e XIX
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A partir da segunda metade do século XVIII, a concepção de personagem herdada de Aristóteles e Horácio entra em declínio, sendo substituída por uma visão psicologizante que entende personagem como a representação do universo psicológico de seu criador. (...)
Com o advento do romantismo, chega a vez do romance psicológico, da confissão e da "análise de almas", do romance histórico, romance de crítica e análise da realidade social. E é durante a segunda metade do século XIX que o gênero alcança seu apogeu, refinando-se enquanto escritura e articulando as experiências humanas mais diversas. Aos realistas e naturalistas coube perseguir a exatidão monográfica dos estudos científicos dos temperamentos e dos meios sociais.
Coincidindo com o apogeu da narrativa romanesca, estendem-se as pesquisas teóricas que procuram encontrar na gênese da obra de arte, nas circunstâncias psicológicas e sociais que cercam o artista, os mistérios da criação e, conseqüentemente, a natureza e a função da personagem. Nesse sentido, os seres fictícios não são mais vistos como imitação do mundo exterior, mas como projeção da maneira de ser do escritor. (...)
Assim, a personagem continua sendo vista como ser antropomórfico cuja medida de avaliação ainda é o ser humano.

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A personagem sob as luzes do século XX
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No que diz respeito especificamente ao romance e à personagem de ficção, é somente com a obra Teoria do Romance, de Györgi Luckács, publicada em 1920, que essas questões são retomadas em novas bases. Luckács, relacionando o romance com a concepção de mundo burguês, encara essa forma narrativa como sendo o lugar de confronto entre herói problemático e o mundo do conformismo e das convenções. O herói problemático, também denominado demoníaco, está ao mesmo tempo em comunhão e em oposição ao mundo, encarnando-se num gênero literário, o romance, situado entre a tragédia e a poesia lírica, de um lado, e a epopéia e o conto, de outro. (...)
Ainda na década de 20, um outro crítico empenha-se em esclarecer alguns aspectos diretamente ligados ao romance e à personagem de ficção. Mais precisamente em 1927, aparece o livro Aspects of Novel, de E. M. Forster, romancista e crítico inglês que, apesar de todas as suas outras obras, imortalizou-se pela sua classificação de personagens em flat – plana, tipificada, sem profundidade psicológica – e round – redonda, complexa, multidimensional. (...)
Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que é a obra, podem ser classificadas em planas e redondas. As personagens planas são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade. Geralmente, são definidas em poucas palavras, estão imunes à evolução no transcorrer da narrativa, de forma que as suas ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, não reservando qualquer surpresa ao leitor. Essa espécie de personagem pode ainda ser subdividida em tipo e caricatura, dependendo da dimensão arquitetada pelo escritor. (...)
As personagens classificadas como redondas, por sua vez, são aquelas definidas por sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o leitor. São dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano. Para exemplificar, poderíamos recorrer ao elenco das personagens criadas pelos bons escritores e que permanecem como janelas abertas para a averiguação da complexidade do ser humano e potência da escritura dos grandes narradores.
Os estudos desenvolvidos pelos formalistas, os quais só serão conhecidos no Ocidente por volta de 1955 com a publicação do livro Formalismo Russo, de Victor Erlich, constituem, num certo sentido, uma verdadeira ciência da literatura, contribuindo decisivamente para que a obra seja encarada como a soma de todos os recursos nela empregados, como um sistema de signos organizados de modo a imprimir a conformação e a significação dessa obra. (...)
De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos componentes da fábula, e só adquire sua especificidade de ser fictício na medida em que está submetida aos movimentos, às regras próprias da trama. Finalmente, no século XX e através da perspectiva dos formalistas, a concepção de personagem se desprende das muletas de suas relações com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia própria.
A contribuição decisiva para esse estudo da personagem desvinculada das relações com o ser humano aparece com a publicação da obra Morfologia Skazki (Morfologia do conto), em 1928, onde o formalista Wladimir Y. Propp (1895-1970) dedica um longo estudo ao conto fantástico russo, explicitando a dimensão da personagem sob o ângulo de sua funcionalidade no sistema verbal compreendido pela narrativa. (...)
O desenvolvimento desses estudos aporta, sob nomenclaturas e teorias diversificadas, numa concepção semiológica da personagem. A esse respeito, e a título de exemplo, vale a pena conferir o texto "Pour un statut sémiologique du personnage", de Philippe Hamon. Nesse ensaio, a personagem é estudada sob a perspectiva semiológica, isto é, como um signo dentro de um sistema de signos, como uma instância de linguagem.(...)
Tomando como ponto de partida três grandes tipos de signos, visão pautada na divisão semântica, sintaxe e pragmática preconizada pelos semiólogos e semioticistas, Philippe Hamon define três tipos principais de personagens:
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Personagens "referenciais": são aquelas que remetem a um sentido pleno e fixo, comumente chamadas de personagens históricas. Essa espécie de personagem está imobilizada por uma cultura, e sua apreensão e reconhecimento dependem do grau de participação do leitor nessa cultura.
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Personagens "embrayeurs": são as que funcionam como elemento de conexão e que só ganham sentido na relação com outros elementos da narrativa, do discurso, pois não remetem a nenhum signo exterior.
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Personagens "anáforas": são aquelas que só podem ser apreendidas completamente na rede de relações formada pelo tecido da obra. Diadorim, de Grande sertão: veredas, poderia estar nesta categoria.

Especialmente nas obras Sémantique Structurale e Du sens, Greimas substitui a designação personagem por ator, referindo com este termo a "unidade lexical do discurso", cujo conteúdo semântico mínimo é definido pelos semas (unidades de significação): entidade figurativa, animado, susceptível de individualização.

Além disso, Greimas distingue ator de actante, uma espécie de arquiator, conceito situado num nível superior de abstração e que, por essa razão, pode expressar-se em vários atores numa mesma narrativa. Para Greimas, existem seis actantes: sujeito, objeto, destinador, destinatário, opositor e adjuvante. E as relações estabelecidas entre os actantes, numa dada narrativa, constituem o modelo actancial.
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COMO COMECEI A ESCREVER

Fernando Sabino
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Quando eu tinha 10 anos, ao narrar a um amigo uma história que havia lido, inventei para ela um fim diferente, que me parecia melhor. Resolvi então escrever as minhas próprias histórias.
Durante o meu curso de ginásio, fui estimulado pelo fato de ser sempre dos melhores em português e dos piores em matemática — o que, para mim, significava que eu tinha jeito para escritor.
Naquela época os programas de rádio faziam tanto sucesso quanto os de televisão hoje em dia, e uma revista semanal do Rio, especializada em rádio, mantinha um concurso permanente de crônicas sob o titulo "O Que Pensam Os Rádio-Ouvintes". Eu tinha 12, 13 anos, e não pensava grande coisa, mas minha irmã Berenice me animava a concorrer, passando à máquina as minhas crônicas e mandando-as para o concurso. Mandava várias por semana, e era natural que volta e meia uma fosse premiada.
Passei a escrever contos policiais, influenciado pelas minhas leituras do gênero. Meu autor predileto era Edgar Wallace. Pouco depois passaria a viver sob a influência do livro mais sensacional que já li na minha vida, que foi o Winnetou de Karl May, cujas aventuras procurava imitar nos meus escritos.
A partir dos 14 anos comecei a escrever histórias "mais sérias", com pretensão literária. Muito me ajudou, neste início de carreira,ter aprendido datilografia na velha máquina Remington do escritório de meu pai. E a mania que passei a ter de estudar gramática e conhecer bem a língua me foi bastante útil.
Mas nada se pode comparar à ajuda que recebi nesta primeira fase dos escritores de minha terra Guilhermino César, João Etienne filho e Murilo Rubião e, um pouco mais tarde, de Marques Rebelo e Mário de Andrade, por ocasião da publicação do meu primeiro livro, aos 18 anos.
De tudo, o mais precioso à minha formação, todavia, talvez tenha sido a amizade que me ligou desde então e pela vida afora a Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, tendo como inspiração comum o culto à Literatura.
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Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 4 - Crônicas", Editora Ática - São Paulo, 1980, pág. 8.

ENSAIOS ÍNTIMOS E IMPERFEITOS

Luiz Antonio de Assis Brasil, 2008

CAPÍTULO I

DAS PRIMEIRAS PALAVRAS.

A primeira palavra de uma criança é aguardada com esperança, com amor. Ao primeiro balbucio, pensarão ouvir mamã, papá. Em alguns casos, a criança apenas exercitará a delícia de sua própria voz.
Alguns manterão por toda a vida esse enlevo por si mesmos. As tias velhas contavam que a primeira palavra do infante foi “água!”. Como eram surdas, poderia ser isso ou qualquer outra coisa.
A mãe sorria. Ela possuía dentes alvíssimos e frios. Venerava uma hagiologia pessoal regida por Santo Antônio de Lisboa. Para ela, o filho dissera “salve Santo Antônio”.
Assim o adulto crê. Deseja crer.
A real primeira palavra, a verdadeira, é jogada ao silêncio, ao vazio, ao nada. Não há ninguém por perto. Um descuido da babá, da mamã, da vovó, e a criança diz a palavra secreta. A criança irá escondê-la dos outros e de si mesmo por toda a vida.
É a palavra que irá dizer antes de cerrar os olhos. E todos julgarão ser a última.
Certo menino do antigo Egito não falava. Seus pais julgavam-se infratores de alguma lei. Consultaram um sacerdote da religião reformada, o qual olhou para o Sol-Aton, o deus criado pelo herético faraó Akhenaton. Cego de luz e inundado pelo espírito da divindade, o sacerdote disse aos pais que o menino falaria. Esperassem.
Esse menino errava pelas margens do grande rio, olhando as barcaças que subiam a corrente. As barcaças levavam pedras colossais para a cidade de Akhetaton. O menino apenas apontava mudamente para as barcaças.
Quando soube do massacre dos sacerdotes da anteriorreligião, o menino sentou-se numa pedra e pôs-se a falar, a falar, e assim falou sem parar contra a injustiça – até que a imensidão de sua fala fez morrer o herético Akhenaton.
Eis o poder das primeiras palavras. Eis uma lenda que deveria existir.

CAPÍTULO II

DAS INSUFICIÊNCIAS DA PALAVRA.

Cada vez que uma criança olha e diz: “Isso é uma laranjeira com flores”, essa árvore torna-se toda nova, toda plena de seiva e folhas. Produzirá os frutos esperados, terá novas estações a cumprir. Impor-se-á, com sua fortuna botânica, ao conhecimento dos homens. Participará, com sua frondosa vegetalidade, da saga humana, animal e mineral sobre a Terra. Não morrerá, a não ser nos livros escolares que explicam o ciclo das árvores.
Aquela criança, ao dizer “Isso é uma laranjeira com flores”, faz surgir, numa geração operada por seu recente pensamento, a inédita trama de circunstâncias e efeitos que por si mesma irá mover-se.
O verbo da criança, em sua energia seminal, faz nascer os frutos.
O velho, ao olhar para a mesma árvore, não dirá nada. Seu pensamento sempre será mais amplo e mais profundo do que suas palavras. Ele terá incorporado tantos sentidos a uma mesma palavra que, afinal, por múltipla e ambígua, ela será evitada. Se a palavra “flor” um dia significou- lhe o maricá, o jasmim, o copo-de-leite, o gerânio, o hibisco, algo nítido a ser visto num jardim festivo, hoje pode evocar-lhe a morna saturação aromática dos velórios. O velho abandonou o hábito de dizer a palavra “flor”. O pensamento substituiu a palavra. O pensamento do velho só entende as coisas em suas modulações.
O grande fotógrafo-retratista do século XIX foi Félix Tournachon, dito Nadar. Era francês. O prédio de seu estúdio comercial em Paris ainda está lá, no Boulevard dês Capucines, perto da Ópera Garnier. Na calçada, um homem vende falsas gravatas de seda a um casal de brasileiros.
Nadar não precisou de palavras para apresentar seus modelos à posteridade. Ele usava um truque ao fotografar: para que a pessoa mostrasse o que desejava ser, pedia que inspirasse: clic. Quando queria retratar a pessoa naquilo que possuía de mais genuíno, de mais verdadeiro, ainda que fosse seu mau-caráter, pedia que expirasse: clic.
E assim imobilizaram-se, inspirando ou expirando, as almas mais profundas de Victor Hugo, D. Pedro II, Sarah Bernhardt, Alexandre Dumas, Rossini, Baudelaire. Belas imagens de Nadar: estamos muito, muito longe da arrogante insuficiência da palavra.

CAPÍTULO III

DAS PALAVRAS PERDIDAS.

Mariana Alcoforado, dama do Alentejo, ao perder seu amor, levado embora pela guerra, pelo desconsolo, pela perfídia, pela mesquinhez, pelo medo e covardia – ou simples acaso – decidiu que sua perda seria o seu maior ganho.
Seu amor era um oficial do exército francês, bastante frívolo. Dela não ficou nenhum retrato; dele, há um homem de peruca barroca, ornado por fitas e condecorações. Leva uma
espada ao flanco. Os saltos de suas botas são vermelhos: ele pertence à melhor nobreza.
A vida de Mariana Alcoforado ganhou plena existência depois dessa perda. Antes, era uma simples mulher que amava, e isso fazia com que fosse igual a todas que amaram os oficiais franceses em serviço no país. Todas foram abandonadas, mas enquanto choravam lágrimas, Mariana Alcoforado escolhia palavras. Escreveu a seu amado cinco cartas de ódio e paixão amorosa. Embaralhou as palavras com tanta sabedoria que se encantou com sua capacidade de escrever. Sua correspondência com o Cavalheiro de Chamilly é estudada pelos eruditos universitários e lida pelos amantes.
Abandonada, Mariana Alcoforado rejuvenesceu; sua mente brilhou, tal como a fome desperta a inteligência. Pela via da literatura, ela assegurou seu lugar na memória dos homens.
Se porventura seu amado voltasse de joelhos e arrependido, Mariana Alcoforado, ela que lhe escrevera “estou condenada, cruel, a adorar-te por toda a vida”, dar-lhe-ia as costas e lhe enviaria uma carta: “Perde-te de mim, deixa-me feliz em minha desgraça”.
E retornaria em paz à sua cela de religiosa na clausura do Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja, onde vivia desde os onze anos.
As pessoas dizem que perdem o tempo justamente quando o ganham para suas reflexões, para seu entendimento do mundo, para contemplação de um lençol pendurado no varal quando o vento o excita. Ninguém perdeu o tempo que julgou perdido. Nele, com seu inesperado acontecer, estamos dispostos a tudo, desde pensar um sistema filosófico até descobrir a melhor maneira de atar os cordões dos calçados.
Por delicadeza / perdi minha vida [Par délicatesse /j´ai perdu ma vie], palavras de Rimbaud no poema Canção da mais alta torre [Chanson de la plus haute tour].
Ele, um mestre da delicadeza, consagrou a metade final de sua vida à rude aventura do Oriente. Foi capataz de uma pedreira em Chipre. Traficou armas. Dedicou-se, na Etiópia, ao comércio escuso de peles e de café. Sentiu o calor africano. Suou, manchou sua camisa. Fez-se fotografar numa pose brutal, cercado pela selva. Veste-se de branco. O tecido está com nódoas de suor. Seu olhar é ameaçador.
Na foto, ele parece um bandoleiro. Se por delicadeza perdera sua vida, só na sordidez a reencontrava. Isso foi preciso para que se considerasse, enfim, um ser humano.

CAPÍTULO V

DA VELHICE


Tudo dorme, no inverno. Tudo pára. Tudo pensa. As folhas já caíram, todas.Esperam o lento desfazer-se, para que o solo seja fértil para as novas folhas que aparecerão em setembro. É curioso viver no Hemisfério Sul. O homem velho caminha, inclinado ao vento, vestindo um sobretudo Ele segura uma sacola de supermercado. A mulher o segue, encolhida. Ambos atravessam a rua. Cuidam para não ficarem sob as rodas de um
carro. Se a morte os tolher, será no inverno, a estação fatal.
Giuseppe Arcimboldo era um artista pintor. Pintou algumas séries de quadros: os quatro elementos, as estações do ano etc. A série mais impressionante é consagrada às estações do ano. Quanto ao inverno, representou-o como um tronco de árvore, ressequido, com a forma de um rosto humano. É, naturalmente, um ancião. Mas desse tronco morto brotam, misteriosos, um limão e uma laranja. A velhice produz cítricos.
Uma vez, em Rothemburg-ob-der-Tauber, o professor de alemão afastou a neve superficial do jardim do Goethe-Institut. Mágica: apareceram, frescos e coloridos, inimagináveis amores-perfeitos. O professor não precisou explicar nada. Com um breve olhar, fez-se entender. Ele possuía os cabelos quase brancos, invernais. Os amores-perfeitos foram, desde então, a garantia de que a velhice, além de cítricos, pode produzir flores com esse nome tão perfeitamente amorável.
O Comandante Bento Gonçalves da Silva, perto de morrer, e era inverno, foi um homem pobre e doente. Olhava para a janela, para a solidão do pampa. Vinham-lhe muitos sons. Sua vida, que findava, era atormentada por sons.
Tiros. Gritos de comando. Lamentos dos feridos. Vozes. Choros de bebês. Os sons entravam pela casa, percorriam os corredores e caminhavam atrás de seus passos. Ele teve a certeza de que vivia os últimos tempos, e que seria esquecido. Ignorava os monumentos da posteridade, nos quais não há a morte: os monumentos são todos de bronze. (Esqueçamos, por piedade, que o bronze pode ser fundido a 900 graus).

SOMBRA - UMA PARÁBOLA

Edgar Allan Poe

Na verdade, embora eu caminhe através do vale da Sombra...
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Davi: Salmos.

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Vós que me ledes por certo estais ainda entre os vivos; mas eu que escrevo terei partido há muito para a região das sombras. Por que de fato estranhas coisas acontecerão, e coisas secretas serão conhecidas, e muitos séculos passarão antes que estas memórias caiam sob vistas humanas. E, ao serem lidas, alguém haverá que nelas não acredite, alguém que delas duvide e, contudo, uns poucos encontrarão muito motivo de reflexão nos caracteres aqui gravados com estiletes de ferro.
O ano tinha sido um ano de terror e de sentimentos mais intensos que o terror, para os quais não existe nome na Terra. Pois muitos prodígios e sinais haviam se produzido, e por toda a parte, sobre a terra e sobre o mar, as negras asas da Peste se estendiam. Para aqueles, todavia, conhecedores dos astros, não era desconhecido que os céus apresentavam um aspecto de desgraça, e para mim, o grego Oinos, entre outros, era evidente que então sobreviera a alteração daquele ano 794, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter entra em conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito característico do firmamento, se muito não me engano, manifestava-se não somente no orbe físico da Terra, mas nas almas, imaginações e meditações da Humanidade.
Éramos sete, certa noite, em torno de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as paredes do nobre salão, na sombria cidade de Ptolemais. Para a sala em que nos achávamos a única entrada que havia era uma alta porta de feitio raro e trabalhada pelo artista Corinos, aferrolhada por dentro. Negras cortinas, adequadas ao sombrio aposento, privavam-nos da visão da lua, das lúgubres estrelas e das ruas despovoadas; mas o pressentimento e a lembrança do flagelo não podiam ser assim excluídos.
Havia em torno de nós e dentro de nós coisas das quais não me é possível dar conta, coisas materiais e espirituais: atmosfera pesada, sensação de sufocamento, ansiedade; e, sobretudo, aquele terrível estado de existência que as pessoas nervosas experimentam quando os sentidos estão vivos e despertos, e as faculdades do pensamento jazem adormecidas. Um peso mortal nos acabrunhava.
Oprimia nossos ombros, os móveis da sala, os copos em que bebíamos. E todas se sentiam opressas e prostradas, todas as coisas exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam nossa orgia. Elevando-se em filetes finos de luz, assim que permaneciam, ardendo, pálidas e imotas. E no espelho que seu fulgor formava sobre a redonda mesa de ébano a que estávamos sentados, cada um de nós, ali reunidos, contemplava o palor de seu próprio rosto e o brilho inquieto nos olhos abatidos de seus companheiros.
Não obstante, ríamos e estávamos alegres, a nosso modo – que era histérico -, e cantávamos as canções de Anacreonte – que são doidas -, e bebíamos intensamente, embora o vinho purpurino nos lembrasse a cor do sangue. Pois ali havia ainda outra pessoa em nossa sala, o jovem Zoilo. Morto, estendido a fio comprido, amortalhado, era como o gênio e o demônio da cena. Mas ah! Não tomava ele parte em nossa alegria! Seu rosto, convulsionado pela doença, e seus olhos, em que a Morte havia apenas extinguido metade do fogo da peste, pareciam interessar-se pela nossa alegria,, na medida em que, talvez, possam os mortos interessar-se pela alegria dos que têm de morrer. Mas embora eu, Oinos, sentisse os olhos do morto cravados sobre mim, ainda assim obrigava-me a não perceber a amargura de sua expressão.
E mergulhando fundamente a vista nas profundezas do espelho de ébano cantava em voz alta e sonorosa as canções do filho de Teios. Mas, Pouco a pouco, minhas canções cessaram e seus ecos, ressoando ao longe, entre os reposteiros negros do aposento, tornavam-se fracos e indistintos, esvanecendo-se.
E eis que dentre aqueles negros reposteiros, onde ia morrer o rumor das canções, se destacou uma sombra negra e imprecisa, uma sombra tal como a da lua quando baixa no céu, e se assemelha ao vulto dum homem: mas não era a sombra de um homem, nem a de um deus, nem a de qualquer outro ente conhecido. E, tremendo um instante entre os reposteiros do aposento, mostrou-se afinal plenamente sobre a superfície da porta de ébano. Mas a sombra era vaga, informe, imprecisa, e não era sombra nem de homem, nem de deus, de deus da Grécia, de deus da Caldéia, de deus egípcio. E a sombra permanecia sobre a porta de bronze, por baixo da cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra alguma, mas ali ficava parada e imutável. Os pés do jovem Zoilo, amortalhado, encontravam-se, se bem me lembro, na porta sobre a qual a sombra repousava. Nós, porém, os sete ali reunidos, tendo avistado a sombra no momento em que se destacava dentre os reposteiros, não ousávamos olhá-la fixamente, mas baixávamos os olhos e fixávamos sem desvio as profundezas do espelho de ébano. E afinal, eu, Oinos, pronunciando algumas palavras em voz baixa, indaguei da sombra seu nome e lugar de nascimento.
E a sombra respondeu: "Eu sou a SOMBRA e minha morada está perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies infernais que orlam o sujo canal de Caronte".
E então, todos sete, erguemo-nos, cheios de horror, de nossos assentos, trêmulos, enregelados, espavoridos, porque o tom da voz da sombra não era de um só ser, mas de uma multidão de seres e, variando suas inflexões, de sílaba para sílaba, vibrava aos nossos ouvidos confusamente, como se fossem as entonações familiares e bem relembradas dos muitos milhares de amigos que a morte ceifara.