quarta-feira

ENSAIOS ÍNTIMOS E IMPERFEITOS

Luiz Antonio de Assis Brasil, 2008

CAPÍTULO I

DAS PRIMEIRAS PALAVRAS.

A primeira palavra de uma criança é aguardada com esperança, com amor. Ao primeiro balbucio, pensarão ouvir mamã, papá. Em alguns casos, a criança apenas exercitará a delícia de sua própria voz.
Alguns manterão por toda a vida esse enlevo por si mesmos. As tias velhas contavam que a primeira palavra do infante foi “água!”. Como eram surdas, poderia ser isso ou qualquer outra coisa.
A mãe sorria. Ela possuía dentes alvíssimos e frios. Venerava uma hagiologia pessoal regida por Santo Antônio de Lisboa. Para ela, o filho dissera “salve Santo Antônio”.
Assim o adulto crê. Deseja crer.
A real primeira palavra, a verdadeira, é jogada ao silêncio, ao vazio, ao nada. Não há ninguém por perto. Um descuido da babá, da mamã, da vovó, e a criança diz a palavra secreta. A criança irá escondê-la dos outros e de si mesmo por toda a vida.
É a palavra que irá dizer antes de cerrar os olhos. E todos julgarão ser a última.
Certo menino do antigo Egito não falava. Seus pais julgavam-se infratores de alguma lei. Consultaram um sacerdote da religião reformada, o qual olhou para o Sol-Aton, o deus criado pelo herético faraó Akhenaton. Cego de luz e inundado pelo espírito da divindade, o sacerdote disse aos pais que o menino falaria. Esperassem.
Esse menino errava pelas margens do grande rio, olhando as barcaças que subiam a corrente. As barcaças levavam pedras colossais para a cidade de Akhetaton. O menino apenas apontava mudamente para as barcaças.
Quando soube do massacre dos sacerdotes da anteriorreligião, o menino sentou-se numa pedra e pôs-se a falar, a falar, e assim falou sem parar contra a injustiça – até que a imensidão de sua fala fez morrer o herético Akhenaton.
Eis o poder das primeiras palavras. Eis uma lenda que deveria existir.

CAPÍTULO II

DAS INSUFICIÊNCIAS DA PALAVRA.

Cada vez que uma criança olha e diz: “Isso é uma laranjeira com flores”, essa árvore torna-se toda nova, toda plena de seiva e folhas. Produzirá os frutos esperados, terá novas estações a cumprir. Impor-se-á, com sua fortuna botânica, ao conhecimento dos homens. Participará, com sua frondosa vegetalidade, da saga humana, animal e mineral sobre a Terra. Não morrerá, a não ser nos livros escolares que explicam o ciclo das árvores.
Aquela criança, ao dizer “Isso é uma laranjeira com flores”, faz surgir, numa geração operada por seu recente pensamento, a inédita trama de circunstâncias e efeitos que por si mesma irá mover-se.
O verbo da criança, em sua energia seminal, faz nascer os frutos.
O velho, ao olhar para a mesma árvore, não dirá nada. Seu pensamento sempre será mais amplo e mais profundo do que suas palavras. Ele terá incorporado tantos sentidos a uma mesma palavra que, afinal, por múltipla e ambígua, ela será evitada. Se a palavra “flor” um dia significou- lhe o maricá, o jasmim, o copo-de-leite, o gerânio, o hibisco, algo nítido a ser visto num jardim festivo, hoje pode evocar-lhe a morna saturação aromática dos velórios. O velho abandonou o hábito de dizer a palavra “flor”. O pensamento substituiu a palavra. O pensamento do velho só entende as coisas em suas modulações.
O grande fotógrafo-retratista do século XIX foi Félix Tournachon, dito Nadar. Era francês. O prédio de seu estúdio comercial em Paris ainda está lá, no Boulevard dês Capucines, perto da Ópera Garnier. Na calçada, um homem vende falsas gravatas de seda a um casal de brasileiros.
Nadar não precisou de palavras para apresentar seus modelos à posteridade. Ele usava um truque ao fotografar: para que a pessoa mostrasse o que desejava ser, pedia que inspirasse: clic. Quando queria retratar a pessoa naquilo que possuía de mais genuíno, de mais verdadeiro, ainda que fosse seu mau-caráter, pedia que expirasse: clic.
E assim imobilizaram-se, inspirando ou expirando, as almas mais profundas de Victor Hugo, D. Pedro II, Sarah Bernhardt, Alexandre Dumas, Rossini, Baudelaire. Belas imagens de Nadar: estamos muito, muito longe da arrogante insuficiência da palavra.

CAPÍTULO III

DAS PALAVRAS PERDIDAS.

Mariana Alcoforado, dama do Alentejo, ao perder seu amor, levado embora pela guerra, pelo desconsolo, pela perfídia, pela mesquinhez, pelo medo e covardia – ou simples acaso – decidiu que sua perda seria o seu maior ganho.
Seu amor era um oficial do exército francês, bastante frívolo. Dela não ficou nenhum retrato; dele, há um homem de peruca barroca, ornado por fitas e condecorações. Leva uma
espada ao flanco. Os saltos de suas botas são vermelhos: ele pertence à melhor nobreza.
A vida de Mariana Alcoforado ganhou plena existência depois dessa perda. Antes, era uma simples mulher que amava, e isso fazia com que fosse igual a todas que amaram os oficiais franceses em serviço no país. Todas foram abandonadas, mas enquanto choravam lágrimas, Mariana Alcoforado escolhia palavras. Escreveu a seu amado cinco cartas de ódio e paixão amorosa. Embaralhou as palavras com tanta sabedoria que se encantou com sua capacidade de escrever. Sua correspondência com o Cavalheiro de Chamilly é estudada pelos eruditos universitários e lida pelos amantes.
Abandonada, Mariana Alcoforado rejuvenesceu; sua mente brilhou, tal como a fome desperta a inteligência. Pela via da literatura, ela assegurou seu lugar na memória dos homens.
Se porventura seu amado voltasse de joelhos e arrependido, Mariana Alcoforado, ela que lhe escrevera “estou condenada, cruel, a adorar-te por toda a vida”, dar-lhe-ia as costas e lhe enviaria uma carta: “Perde-te de mim, deixa-me feliz em minha desgraça”.
E retornaria em paz à sua cela de religiosa na clausura do Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja, onde vivia desde os onze anos.
As pessoas dizem que perdem o tempo justamente quando o ganham para suas reflexões, para seu entendimento do mundo, para contemplação de um lençol pendurado no varal quando o vento o excita. Ninguém perdeu o tempo que julgou perdido. Nele, com seu inesperado acontecer, estamos dispostos a tudo, desde pensar um sistema filosófico até descobrir a melhor maneira de atar os cordões dos calçados.
Por delicadeza / perdi minha vida [Par délicatesse /j´ai perdu ma vie], palavras de Rimbaud no poema Canção da mais alta torre [Chanson de la plus haute tour].
Ele, um mestre da delicadeza, consagrou a metade final de sua vida à rude aventura do Oriente. Foi capataz de uma pedreira em Chipre. Traficou armas. Dedicou-se, na Etiópia, ao comércio escuso de peles e de café. Sentiu o calor africano. Suou, manchou sua camisa. Fez-se fotografar numa pose brutal, cercado pela selva. Veste-se de branco. O tecido está com nódoas de suor. Seu olhar é ameaçador.
Na foto, ele parece um bandoleiro. Se por delicadeza perdera sua vida, só na sordidez a reencontrava. Isso foi preciso para que se considerasse, enfim, um ser humano.

CAPÍTULO V

DA VELHICE


Tudo dorme, no inverno. Tudo pára. Tudo pensa. As folhas já caíram, todas.Esperam o lento desfazer-se, para que o solo seja fértil para as novas folhas que aparecerão em setembro. É curioso viver no Hemisfério Sul. O homem velho caminha, inclinado ao vento, vestindo um sobretudo Ele segura uma sacola de supermercado. A mulher o segue, encolhida. Ambos atravessam a rua. Cuidam para não ficarem sob as rodas de um
carro. Se a morte os tolher, será no inverno, a estação fatal.
Giuseppe Arcimboldo era um artista pintor. Pintou algumas séries de quadros: os quatro elementos, as estações do ano etc. A série mais impressionante é consagrada às estações do ano. Quanto ao inverno, representou-o como um tronco de árvore, ressequido, com a forma de um rosto humano. É, naturalmente, um ancião. Mas desse tronco morto brotam, misteriosos, um limão e uma laranja. A velhice produz cítricos.
Uma vez, em Rothemburg-ob-der-Tauber, o professor de alemão afastou a neve superficial do jardim do Goethe-Institut. Mágica: apareceram, frescos e coloridos, inimagináveis amores-perfeitos. O professor não precisou explicar nada. Com um breve olhar, fez-se entender. Ele possuía os cabelos quase brancos, invernais. Os amores-perfeitos foram, desde então, a garantia de que a velhice, além de cítricos, pode produzir flores com esse nome tão perfeitamente amorável.
O Comandante Bento Gonçalves da Silva, perto de morrer, e era inverno, foi um homem pobre e doente. Olhava para a janela, para a solidão do pampa. Vinham-lhe muitos sons. Sua vida, que findava, era atormentada por sons.
Tiros. Gritos de comando. Lamentos dos feridos. Vozes. Choros de bebês. Os sons entravam pela casa, percorriam os corredores e caminhavam atrás de seus passos. Ele teve a certeza de que vivia os últimos tempos, e que seria esquecido. Ignorava os monumentos da posteridade, nos quais não há a morte: os monumentos são todos de bronze. (Esqueçamos, por piedade, que o bronze pode ser fundido a 900 graus).

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