terça-feira

A FILOSOFIA DA COMPOSIÇÃO

POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. (Trad. Oscar Mendes e Milton Amado)
São Paulo: Globo, 1999. 3. Ed. revista.

Charles Dickens, numa nota que agora está à minha fren­te, aludindo a uma análise que fiz, certa vez, do mecanismo, de Barnaby Rudge, diz "De passagem, sabe que Godwin escre­veu seu Caleb Williams de trás para diante? Envolveu primei­ramente seu herói numa teia de dificuldades, que formava o segundo volume, e depois, para fazer o primeiro, ficou procu­rando um modo de explicar o que havia sido feito".
Não posso pensar que esse seja o modo preciso de proce­der de Godwin, e, de fato, o que ele próprio confessa não está completamente de acordo com a idéia do sr. Dickens. Mas o autor de Caleb Williams era muito bom artista para deixar de perceber a vantagem procedente de um processo, pelo menos, um tanto semelhante. Nada é mais claro do que deverem todas as intrigas, dignas desse nome, ser elaboradas em rela­ção ao epílogo, antes que se tente qualquer coisa com a pena. Só tendo o epílogo constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou cau­salidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção.
Há um erro radical, acho, na maneira habitual de cons­truir uma ficção. Ou a história nos concede uma tese, ou uma é sugerida por um incidente do dia, ou, no melhor caso, o autor senta-se para trabalhar na combinação de acontecimen­tos impressionantes, para formar simplesmente a base da narrativa, planejando, geralmente, encher de descrições, diá­logos ou comentários autorais todas as lacunas do fato ou da ação que se possam tomar aparentes, de página a página.
Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo sempre a originalidade em vista, pois é falso a si mesmo quem se arrisca a dispensar uma fonte de interesse tão evidente e tão facilmente alcançável, digo-me, em primeiro lugar: "Dentre os inúmeros efeitos, ou impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na ocasião atual escolher?" Tendo escolhi­do primeiro um assunto novelesco e depois um efeito vivo, considero se seria melhor trabalhar com os incidentes ou com o tom - com os incidentes habituais e o tom especial ou com o contrário, ou com a especialidade tanto dos incidentes, quanto do tom - depois de procurar em torno de mim (ou melhor, dentro) aquelas combinações de tom e acontecimento que melhor me auxiliem na construção do efeito.
Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista, por um autor que quisesse, isto é, que pudesse, pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acaba­mento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos escritores, especialmente os poe­tas, preferem ter por entendido que compõem por meio de urna espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalho­sas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcança­dos no último instante, para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as imagina­ções plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário.
Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum o caso em que um autor esteja absolutamente em condições de reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram atingidas. As sugestões, em geral tendo-se erguido em tumulto, são seguidas e esquecidas de maneira semelhante.
Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima aludida nem1 em qualquer tempo, tive a menor dificuldade em relembrar os passos progressivos de qualquer de minhas composições; e, desde que o interesse de uma análise, ou reconstrução, tal como a que tenho considerado um desidera­to, é inteiramente independente de qualquer interesse real ou imaginário na coisa analisada, não se deve encarar como falta de decoro de minha parte, mostrar o modus operandi pelo qual uma de minhas próprias obras se completou. Escolhi “O Corvo”, como a mais geralmente conhecida. É meu desíg­nio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático.
Deixamos de parte, por ser sem importância para o poema per se, a circunstância, ou digamos, a necessidade que, em primeiro lugar, deu origem à intenção de compor um poema que, a um tempo, agradasse ao gosto do público e da crítica.
Comecemos, pois, a partir dessa intenção.
A consideração inicial foi a da extensão. Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interfe­rem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído. Mas, visto como, ceteris paribus, nenhum poeta pode permitir-se dispensar qualquer coisa que possa auxiliar seu intento, resta a ver se há, na extensão, qualquer vanta­gem que contrabalance a perda de unidade resultante. Digo logo que não há. O que denominamos um poema longo é, de fato, apenas a sucessão de alguns curtos; isto é, de breves eleitos poéticos. É desnecessário demonstrar que um poema só o é quando emociona, intensamente, elevando a alma; e todas as emoções intensas, por uma necessidade psíquica, são breves. Por essa razão, pelo menos metade do Paraíso Perdido é essencialmente prosa, pois uma sucessão de emoções poéticas se intercala, inevitavelmente, de depressões cor­respondentes; e o conjunto se vê privado, por sua extrema extensão, do vastamente importante elemento artístico, a totalidade, ou unidade de efeito.
Parece evidente, pois, que há um limite distinto, no que se refere à extensão para todas as obras de arte literária, o limite de uma só assentada, e que embora em certas espécies de composição em prosa, tais como Robinson Crusoe (que não exige unidade), esse limite pode ser vantajosamente supera­do, nunca poderá ser ele ultrapassado convenientemente por um poema. Dentro desse limite, a extensão de um poema deve ser calculada, para conservar relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção ou elevação; ou ainda em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético que ele é capaz de produzir. Pois é claro que a brevi­dade deve estar na razão direta da intensidade do efeito pre­tendido, e isto com uma condição, a de que certo grau de duração é exigido, absolutamente1 para a produção de qual­quer efeito.
Tendo em vista essas considerações, assim como aquele grau de excitação, que eu não colocava acima do gosto popu­lar nem abaixo do gosto crítico, alcancei logo o que imaginei ser a extensão, conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de cerca de cem versos. De fato, ele tem cento e oito.
Meu pensamento seguinte referiu-se à escolha de uma impressão, ou efeito, a ser obtido; e aqui bem posso observar que, através de toda a elaboração, tive firmemente em vista o desejo de tornar a obra apreciável por todos. Seria levado longe demais de meu assunto imediato, se fosse demonstrar um ponto sobre o qual tenho repetidamente insistido e que, entre poetas, não tem a menor necessidade de demonstração; refiro-me ao ponto de que a Beleza é a única província legíti­ma do poema. Poucas palavras, contudo, para elucidar meu verdadeiro pensamento, que alguns de meus amigos tiveram inclinação para interpretar mal. O prazer que seja ao mesmo tempo o mais intenso, o mais enlevante e o mais puro é, creio eu, encontrado na contemplação do belo. Quando, de fato, os homens falam de Beleza, querem exprimir, precisamente, não uma qualidade, como se supõe, mas um efeito; referem-­se, em suma, precisamente àquela intensa e pura elevação da alma - e não da inteligência ou do coração - de que venho falando e que se experimenta em conseqüência da contem­plação do Belo. Ora, designo a Beleza como a província do poema, simplesmente porque é evidente regra de arte que os efeitos deveriam jorrar de causas diretas, que os objetivos deveriam ser alcançados pelos meios melhor adaptados para atingi-los. E ninguém houve ainda bastante tolo, para negar que a elevação especial a que aludi, é mais prontamente atin­gida num poema. Quanto ao objetivo Verdade, ou a satisfa­ção do intelecto, e ao objetivo Paixão, ou a excitação do cora­ção, são eles muito mais prontamente atingíveis na prosa, embora também, até certa extensão, na poesia. A Verdade, de fato, demanda uma precisão, e a Paixão uma familiaridade (o verdadeiramente apaixonado me compreenderá), que são inteiramente antagônicas daquela Beleza que, asseguro, é a excitação ou a elevação agradável da alma. De modo algum se segue, de qualquer coisa aqui dita, que a paixão e mesmo a verdade não possam ser introduzidas, proveitosamente introduzidas até, num poema, porque elas podem servir para elucidar ou auxiliar o efeito geral, como as discordâncias em música, pelo contraste; mas o verdadeiro artista sempre se esforçara, em primeiro lugar, para harmonizá-las, na submissão conveniente ao alvo predominante, e, em segundo lugar, para revesti-las, tanto quanto possível, daquela Beleza que é a atmosfera e a essência do poema.
Encarando, então, a Beleza como a minha província, minha seguinte questão se referia ao tom de sua mais alta manifestação, e todas as experiências têm demonstrado que esse tom é o da tristeza. A beleza de qualquer espécie, em seu desenvolvimento supremo, invariavelmente provoca na alma sensitiva as lágrimas. A melancolia é, assim, o mais legi­timo de todos os tons poéticos.
Estando assim determinadas a extensão, a província e o tom, entreguei-me à indução normal, a fim de obter algum efeito artístico agudo que me pudesse servir de nota-chave na construção do poema, algum eixo sobre o qual toda a estrutura devesse girar. Passando cuidadosamente em revis­ta todos os efeitos artísticos usuais, ou, mais propriamente, situações, no sentido teatral não deixei de perceber de ime­diato que nenhum tinha sido tão universalmente empregado como o do refrão. A universalidade desse emprego bastou para me assegurar de seu valor intrínseco e evitou-me a necessidade de submetê-lo à análise. Considerei-o, contudo, em relação a sua suscetibilidade de aperfeiçoamento e vi logo que ainda se achava num estado primitivo. Como é comu­mente usado, o refrão poético, ou estribilho, não só se limita ao verso lírico, mas depende, para impressionar, da força da monotonia, tanto no som., como na idéia. O prazer somente se extrai pelo sentido de identidade, de repetição. Resolvi fazer diversamente, e assim elevar o efeito, aderindo em geral à monotonia do som, porém continuamente variando na da idéia: isto é, decidi produzir continuamente novos efei­tos, pela variação da aplicação do estribilho, permanecendo este, na maior parte das vezes, invariável.
Assentados tais pontos, passei a pensar sobre a nature­za de meu refrão. Desde que sua aplicação deveria ser repetidamente variada, era claro que esse refrão deveria ser breve, pois haveria insuperáveis dificuldades na aplicação de qualquer sentença extensa. Em proporção à brevida­de da sentença estaria, naturalmente, a facilidade da varia­ção. Isso imediatamente me levou a uma só palavra como o melhor refrão.
Suscitou-se, então, a questão do caráter da palavra. Tendo-me inclinado por um refrão, a divisão do poema em estância surgia, naturalmente, como corolário, formando o refrão o fecho de cada estância. Não cabia dúvida de que tal fecho, para ter força, devia ser sonoro e suscetível de ênfase prolongada; e tais considerações inevitavelmente me leva­ram ao o prolongado, como a mais sonora vogal, em conexão com o r como a consoante mais aproveitável.
Ficando assim determinado o som do refrão, tornou-se necessário escolher uma palavra que encerrasse esse som e, ao mesmo tempo, se relacionasse o mais possível com a melancolia predeterminada corno o tom do poema. Em tal busca, teria sido absolutamente impossível que escapasse a palavra "never more". De fato, foi ela a primeira que se apresentou.
O desiderato seguinte era um pretexto para o uso con­tinuo da palavra "never more" (nunca mais). Observando a dificuldade que já encontrara em inventar uma razão suficientemente plausível para sua continua repetição, não deixei de perceber que essa dificuldade nascia somente da presunção de que a palavra devia ser contínua ou monotonamente pronunciada por um ser humano. Não deixei de perceber, em suma, que a dificuldade estava em conciliar essa monotonia com o exercício da razão por parte da cria­tura que repetisse a palavra. Daí, pois, ergueu-se imediata­mente a idéia de uma criatura não racional, capaz de falar, e muito naturalmente foi sugerido de início, a de um papa­gaio, que foi logo substituída pela de um Corvo, como igualmente capaz de falar e infinitamente mais em relação com o tom pretendido.
Eu já havia chegado à idéia de um Corvo, a ave do mau agouro, repetindo monotonamente a expressão "Nunca mais", na conclusão de cada estância de um poema de tom melancólico e extensão de cerca de cem linhas. Então, jamais perdendo de vista o objetivo - o superlativo ou a perfeição em todos os pontos -, perguntei-me: "De todos os temas melan­cólicos, qual, segundo a compreensão universal da humani­dade, é o mais melancólico?" A Morte - foi a resposta eviden­te. "E quando", insisti, "esse mais melancólico dos temas se torna o mais poético?" Pelo que já explanei, um tanto prolon­gadamente, a resposta também aí era evidente: “Quando ele se alia, mais de perto, à Beleza; a morte, pois, de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tema mais poético do mundo e, igualmente, a boca mais capaz de desenvolver tal tema é a de um amante despojado de seu amor”.
Tinha, pois, de combinar as duas idéias, a de um aman­te lamentando sua morta amada e a de um Corvo continuamente repetindo as palavras "Nunca mais". E tinha de com­biná-las tendo em mente meu propósito de variar, a cada vez, a aplicação da palavra repetida, mas a única maneira inteligí­vel de tal combinação era a de imaginar o Corvo empregan­do a palavra, em resposta às perguntas do amante. E então aí vi imediatamente, a oportunidade concedida para o efeito do qual eu tinha estado dependente, isto é, o efeito da varia­ção da aplicação. Vi que poderia fazer da primeira pergunta, apresentada pelo amante - a primeira pergunta a que o Corvo deveria responder "Nunca mais" -, que poderia fazer dessa primeira pergunta um lugar-comum da segunda uma expressão menos comum, da terceira ainda menos, e assim por diante, até que o amante, arrancado de sua displicência primitiva, pelo caráter melancólico da própria palavra, pela sua freqüente repetição e pela consideração da sinistra repu­tação da ave que a pronunciava, fosse afinal excitado à superstição e loucamente fizesse perguntas de espécie muito diversa. Perguntas cujas respostas lhe interessavam apaixo­nadamente ao coração, fazendo-as num misto de superstição e daquela espécie de desespero que se deleita na própria tor­tura, fazendo-as não porque propriamente acreditasse no caráter profético, ou demoníaco da ave (que a razão lhe diz estar apenas repetindo uma lição aprendida rotineiramente), mas porque experimentaria um frenético prazer em organi­zar suas perguntas para recebei, do esperado "Nunca mais", a mais deliciosa, porque a mais intolerável, das tristezas. Percebendo a oportunidade que assim se me oferecia, ou, mais estritamente, que se me impunha no desenrolar da composição, estabeleci na mente o climax, ou a pergunta con­clusiva: aquela pergunta de que o "Nunca mais" seria, pela última vez, a resposta; aquela pergunta em resposta à qual o "Nunca mais" envolveria a máxima concentração possível de tristeza e de desespero.
Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo pelo fim por que devem começar todas as obras de arte, porque foi nesse ponto de minhas considerações prévias que, pela primei­ra vez, tomei do papel e da pena para compor a estância:

“Profeta!” - exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave
[infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus, que adoram todos os mortais,
fala se esta alma, sob o guante atroz da dor, no Éden distante
verá a deusa fulgurante a quem, nos céus, chamam Lenora
- essa, mais bela do que a aurora, a quem, nos céus, chamam
[Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”.
Compus essa estância, nesse ponto, primeiramente por­que, estabelecendo o ponto culminante, melhor poderia variar e graduar, no que se refere à seriedade e importância, as perguntas precedentes do amante e, em segundo lugar, porque poderia definitivamente assentar o ritmo, o metro, a extensão e o arranjo geral da estância, assim como graduar as estâncias que a deviam preceder, para que nenhuma delas pudesse ultrapassá-la em seu efeito rítmico. Tivesse eu sido capaz, na composição subseqüente, de construir estâncias mais vigorosas, não teria hesitações em enfraque­cê-las propositadamente, para que não interferissem com o efeito culminante.
E aqui bem posso dizer algumas palavras sobre versifi­cação. Meu primeiro objetivo, como de costume, era a origi­nalidade. A amplitude com que esta tem sido negligenciada na versificação é uma das coisas mais inexplicáveis do mundo. Admitindo-se que haja pequena possibilidade de variedade no ritmo, permanece claro, porém, que as varieda­des possíveis do metro e da estância são absolutamente infi­nitas, e contudo, durante séculos, nenhum homem ,em verso, jamais fez ou jamais pareceu pensar em fazer alguma coisa original. A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encon­trada, ela, em geral tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação.
Sem dúvida, não pretendo que haja qualquer originali­dade, quer no ritmo, quer no metro de "O Corvo". O primei­ro é trocaico, o segundo é octâmetro acatalético, alternando-­se com um heptâmetro catalético, repetido no refrão do quin­to verso e terminando com um tetâmetro catalético. Falando menos pedantescamente, o pé empregado no poema (tro­queu) consiste em uma sílaba longa, seguida por uma curta; o primeiro verso da estância compõe-se de oito desses pés; o segundo, de sete e meio (de fato, dois terços), o terceiro de oito, o quarto de sete e meio o quinto idem, o sexto de três e meio. Ora, cada um desses versos, tomado separadamente, tem sido empregado antes, mas a originalidade que "O Corvo" tem está em sua combinação na estância, nada já havendo sido tentado que mesmo remotamente se aproxi­masse dessa combinação. O efeito dessa originalidade de combinação é ajudado por outros efeitos incomuns, alguns inteiramente novos, oriundos de uma ampliação da aplica­ção dos princípios de rima e de aliteração.
O ponto seguinte, a ser considerado, era o modo de jun­tar o amante e o Corvo: e o primeiro ramo dessa considera­ção era o local. Para isso, a sugestão mais natural seria a de uma floresta, ou a dos campos; mas sempre me pareceu que uma circunscrição fechada do espaço é absolutamente necessá­ria para o efeito do incidente insulado e tem a força de uma moldura para um quadro. Tem indiscutível força moral para conservar concentrada a atenção e, naturalmente, não deve ser confundida com a mera unidade de lugar.
Determinei, então, colocar o amante em seu quarto - num quarto para ele sagrado, pela recordação daquela que o freqüentara. O quarto é apresentado como ricamente mobi­liado, isso na simples continuação das idéias, que eu já tinha explanado, a respeito da Beleza como a única verdadeira tese poética.
Tendo sido assim determinado o local, tinha agora de introduzir a ave e o pensamento de fazê-lo pela janela era inevitável. A idéia de fazer o amante supor, em primeiro lugar, que o tatalar das asas da ave contra o postigo é um "batido" à porta, originou-se de um desejo de aumentar, pela prolongação, a curiosidade do leitor, e de um desejo de admi­tir o efeito casual surgindo do fato de o amante abrir a porta, achar tudo escuro e depois aceitar a semifantasia de que fora o espírito de sua amada que batera.
Fiz a noite tempestuosa, primeiro para explicar por que o Corvo procurava entrar e, em segundo lugar, para efeito de contraste com a serenidade (física) que reinava dentro do quarto.
Fiz o pássaro pousar no busto de Minerva, também para efeito de contraste entre o mármore e a plumagem - sendo entendido que o busto foi absolutamente sugerido pelo pássa­ro - e escolhido o busto de Minerva, primeiro, para combinar mais com a erudição do amante e, em segundo lugar, pela sonoridade da própria palavra Minerva.
Pelo meio do poema, também, aproveitei-me da força do contraste, tendo em vista aprofundar a impressão derradeira. Por exemplo, um ar do fantástico - aproximando-se o mais possível do burlesco - é dado à entrada do Corvo. Ele entra "em tumulto, a esvoaçar".

Como um fidalgo passo, augusto, e sem notar sequer
[meu susto,
adeja e pousa sobre o busto - uma escultura de
[Minerva.

Nas duas estâncias que se seguem, esse desígnio é ainda mais evidentemente solicitado:

Ao ver da ave austera e escura a soteníssima figura,
desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus
[ais.
“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” - então lhe
[digo -
"não tens pavor; fala comigo, alma da noite, espectro
torvo, qual é o teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu
[no inferno torvo!"

E o Corvo disse: "Nunca mais".

Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais,
Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no
[presente,
que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua
[porta,
uma ave (ou fera, pouco importa) empoleirada, em sua porta,
e que se chama "Nunca mais".
Sendo assim assegurado o efeito do desenvolvimento, imediatamente troquei o fantástico por um tom da mais pro­funda seriedade, começando esse tom na estância imediata­mente seguinte à última citada, com o verso:

Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave [sombria etc.

Daí para a frente, o amante não mais zomba, não mais vê qualquer coisa de fantástico na conduta do Corvo. Fala dele como “horrendo, torvo, ominoso e antigo”, sentindo "da ave, incandescente, o olhar" queimá-lo "fixamente". Essa revolu­ção do pensamento, ou da imaginação, da parte do aman­te, destina-se a provocar uma semelhante da parte do lei­tor, levar o espírito a uma disposição própria para o desen­lace, que é agora completado tão rápida e diretamente quanto possível.
Com o desenlace conveniente, com a resposta do Corvo, "Nunca mais", à pergunta final do amante, sobre se ele encontraria sua amada em um outro mundo, o poema, em sua fase evidente, que é a da simples narrativa, pode ser con­siderado como completo. Até aí, tudo está dentro dos limites do explicável do real. Um corvo, tendo aprendido rotineiramente a dizer apenas "Nunca mais" e tendo escapado à vigi­lância de seu dono, é levado à meia-noite, em meio à violên­cia de uma tempestade, a buscar entrada numa janela, pela qual se vê ainda a luz brilhar: a janela do quarto de um estu­dante, ocupado entre folhear um volume e sonhar com uma adorada amante morta. Sendo aberta a janela, ao tumultuar das asas da ave, esta pousa no sítio mais conveniente, fora do alcance imediato do estudante, que, divertido pelo incidente e pela extravagância das maneiras do visitante, pergunta-lhe, por brincadeira e sem esperar resposta, por seu nome. O Corvo, interrogado, responde com seu costumeiro "Nunca mais", frase que logo encontra eco no coração melancólico do estudante, que, dando expressão, em voz alta, a certos pensa­mentos sugeridos pelo momento, é de novo surpreendido pela repetição do "Nunca mais" do Corvo. O estudante adi­vinha então a real causa do acontecimento, mas é impelido, como já explanei, pela sede humana de autotortura e, em parte, pela superstição, a propor questões tais à ave que só lhe trarão, ao amante, o máximo da volúpia da tristeza, gra­ças á esperada frase "Nunca mais". Levando até o extremo essa autotortura, a narração, naquilo que denominei sua fase primeira ou evidente, tem um fim natural e até ai não ultra­passou os limites do real.
Mas nos assuntos assim manejados, por mais agudamente que o sejam, por mais vivas riquezas de incidentes que possuam, há sempre certa dureza ou nudez que repele o olhar artístico. Duas coisas são invariavelmente requeridas: primeiramente, certa soma de complexidade, ou, mais pro­priamente, de adaptação; e, em segundo lugar, certa soma de sugestividade, certa subcorrente embora indefinida de senti­do. Esta última, afinal, é que dá a uma obra de arte tanto daquela riqueza (para tirar da conversação cotidiana um termo eficaz) que gostamos demais de confundir com o ideal. É o excesso do sentido sugerido1 é torná-lo a corrente superior, em vez da subcorrente do tema, que transforma em prosa (e prosa da mais chata espécie) a assim chamada poesia dos assim chamados transcendentalistas.
Mantendo essas opiniões, ajuntei duas estâncias que concluem o poema, sendo sua sugestividade destinada a penetrar toda a narrativa que as precede. A subcorrente de significação torna-se primeiramente evidente no verso

"Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa
[porta!"
E o Corvo disse: "Nunca mais!"
Deve-se observar que as palavras "o peito" envolvem a primeira expressão metafórica no poema. Elas, com a respos­ta "Nunca mais", dispõem a mente a buscar uma moral em tudo quanto foi anteriormente narrado. O leitor começa agora a encarar o Corvo como simbólico, mas não é senão nos versos finais da última estância que se permite distinta­mente ser vista a intenção de torná-lo um emblema da Recordação dolorosa e infindável:
E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas
a fio, sobre o alvo busto de Minerva, inerte sempre
[em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em
[sonhos, dorme,
e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua
[sombra.
Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma e,
[presa à sombra,
Não há de erguer-se, ai! nunca mais!




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