quarta-feira

EXCERTOS DE A PERSONAGEM

Beth Brait
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A personagem e a tradição crítica.
No princípio está Aristóteles

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Tanto o conceito de personagem quanto a sua função no discurso estão diretamente vinculados não apenas à mobilidade criativa do fazer artístico, mas especialmente à reflexão a respeito dos modos de existência e do destino desse fazer. Pensar a questão da personagem significa, necessariamente, percorrer alguns caminhos trilhados pela crítica no sentido de definir seu objeto e buscar o instrumental adequado à análise e à fundamentação dos juízos acerca desse objeto.
Já foi dito e impresso, muitas vezes, que é inevitável iniciar uma reflexão teórica sem voltar o olhar para a Grécia antiga e para os pensadores que impulsionaram o conhecimento. No caso da personagem de ficção, é também nesse momento que se vai encontrar o início de uma tradição voltada para o conhecimento e a reflexão dessa instância narrativa.
Dos teóricos conhecidos, Aristóteles é o primeiro a tocar nesse problema. Ao discutir as manifestações da poesia lírica, épica e dramática, esse pensador grego levantou alguns aspectos importantes, que marcaram e marcam até hoje o conceito de personagem e sua função na literatura.
Um aspecto relevante desses estudos é o que diz respeito à semelhança existente entre personagem e pessoa, conceito centrado na discutida, e raras vezes compreendida, mimesis aristotélica. Durante muito tempo, o termo mimesis foi traduzido como sendo "imitação do real", como referência direta à elaboração de uma semelhança ou imagem da natureza. Essa concepção, até certo ponto empobrecedora das afirmações contidas no discurso aristotélico, marcou por longo tempo as tentativas de conceituação, caracterização e valoração da personagem.
Na verdade, o que alguns críticos contemporâneos têm procurado demonstrar é que uma leitura mais aprofundada e menos marcada do conceito de arte, e, conseqüentemente, do conceito de mimesis contidos na Poética, revela o quanto Aristóteles estava preocupado não só com aquilo que é "imitado" ou "refletido" num poema, mas também com a própria maneira de ser do poema e com os meios utilizados pelo poeta para a elaboração de sua obra.
Aristóteles aponta, entre outras coisas, para dois aspectos essenciais:

- a personagem como reflexo da pessoa humana;

- a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto.
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Perseguindo a personagem
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Os estudos empreendidos por Aristóteles serviram de modelo, num certo sentido, à concepção de personagem que vigorou até meados do século XVIII, momento em que o conceito de mimesis flagrado no pensador grego e manipulado por seus interpretadores começa a ser combatido. Durante esse longo período, todos os teóricos que trataram de questões ligadas à arte, incluindo-se aí o problema da personagem, foram influenciados pela visão aristotélica e mais particularmente pela tese ético-representativa encerrada em sua teoria.
No início desse percurso situa-se Horácio, o poeta latino que em sua Ars poetica divulga as idéias aristotélicas e reitera suas proposições. No que diz respeito à personagem, Horácio associa o aspecto de entretenimento, contido pela literatura, à sua função pedagógica, e consegue com isso enfatizar o aspecto moral desses seres fictícios. De certo modo, a concepção de personagem divulgada pelo pensador latino contribui de forma significativa para que se acentue o conceito de imitação propiciado pelo termo mimesis para a reinstauração da finalidade utilitarista da arte, entrevista em Aristóteles.
Apegado às relações existentes entre a arte e a ética, Horácio concebe a personagem não apenas como reprodução dos seres vivos, mas como modelos a serem imitados, identificando personagem-homem e virtude e advogando para esses seres o estatuto de moralidade humana que supõe imitação.


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Os novos ares dos séculos XVIII e XIX
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A partir da segunda metade do século XVIII, a concepção de personagem herdada de Aristóteles e Horácio entra em declínio, sendo substituída por uma visão psicologizante que entende personagem como a representação do universo psicológico de seu criador. (...)
Com o advento do romantismo, chega a vez do romance psicológico, da confissão e da "análise de almas", do romance histórico, romance de crítica e análise da realidade social. E é durante a segunda metade do século XIX que o gênero alcança seu apogeu, refinando-se enquanto escritura e articulando as experiências humanas mais diversas. Aos realistas e naturalistas coube perseguir a exatidão monográfica dos estudos científicos dos temperamentos e dos meios sociais.
Coincidindo com o apogeu da narrativa romanesca, estendem-se as pesquisas teóricas que procuram encontrar na gênese da obra de arte, nas circunstâncias psicológicas e sociais que cercam o artista, os mistérios da criação e, conseqüentemente, a natureza e a função da personagem. Nesse sentido, os seres fictícios não são mais vistos como imitação do mundo exterior, mas como projeção da maneira de ser do escritor. (...)
Assim, a personagem continua sendo vista como ser antropomórfico cuja medida de avaliação ainda é o ser humano.

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A personagem sob as luzes do século XX
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No que diz respeito especificamente ao romance e à personagem de ficção, é somente com a obra Teoria do Romance, de Györgi Luckács, publicada em 1920, que essas questões são retomadas em novas bases. Luckács, relacionando o romance com a concepção de mundo burguês, encara essa forma narrativa como sendo o lugar de confronto entre herói problemático e o mundo do conformismo e das convenções. O herói problemático, também denominado demoníaco, está ao mesmo tempo em comunhão e em oposição ao mundo, encarnando-se num gênero literário, o romance, situado entre a tragédia e a poesia lírica, de um lado, e a epopéia e o conto, de outro. (...)
Ainda na década de 20, um outro crítico empenha-se em esclarecer alguns aspectos diretamente ligados ao romance e à personagem de ficção. Mais precisamente em 1927, aparece o livro Aspects of Novel, de E. M. Forster, romancista e crítico inglês que, apesar de todas as suas outras obras, imortalizou-se pela sua classificação de personagens em flat – plana, tipificada, sem profundidade psicológica – e round – redonda, complexa, multidimensional. (...)
Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que é a obra, podem ser classificadas em planas e redondas. As personagens planas são construídas ao redor de uma única idéia ou qualidade. Geralmente, são definidas em poucas palavras, estão imunes à evolução no transcorrer da narrativa, de forma que as suas ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, não reservando qualquer surpresa ao leitor. Essa espécie de personagem pode ainda ser subdividida em tipo e caricatura, dependendo da dimensão arquitetada pelo escritor. (...)
As personagens classificadas como redondas, por sua vez, são aquelas definidas por sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o leitor. São dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano. Para exemplificar, poderíamos recorrer ao elenco das personagens criadas pelos bons escritores e que permanecem como janelas abertas para a averiguação da complexidade do ser humano e potência da escritura dos grandes narradores.
Os estudos desenvolvidos pelos formalistas, os quais só serão conhecidos no Ocidente por volta de 1955 com a publicação do livro Formalismo Russo, de Victor Erlich, constituem, num certo sentido, uma verdadeira ciência da literatura, contribuindo decisivamente para que a obra seja encarada como a soma de todos os recursos nela empregados, como um sistema de signos organizados de modo a imprimir a conformação e a significação dessa obra. (...)
De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos componentes da fábula, e só adquire sua especificidade de ser fictício na medida em que está submetida aos movimentos, às regras próprias da trama. Finalmente, no século XX e através da perspectiva dos formalistas, a concepção de personagem se desprende das muletas de suas relações com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia própria.
A contribuição decisiva para esse estudo da personagem desvinculada das relações com o ser humano aparece com a publicação da obra Morfologia Skazki (Morfologia do conto), em 1928, onde o formalista Wladimir Y. Propp (1895-1970) dedica um longo estudo ao conto fantástico russo, explicitando a dimensão da personagem sob o ângulo de sua funcionalidade no sistema verbal compreendido pela narrativa. (...)
O desenvolvimento desses estudos aporta, sob nomenclaturas e teorias diversificadas, numa concepção semiológica da personagem. A esse respeito, e a título de exemplo, vale a pena conferir o texto "Pour un statut sémiologique du personnage", de Philippe Hamon. Nesse ensaio, a personagem é estudada sob a perspectiva semiológica, isto é, como um signo dentro de um sistema de signos, como uma instância de linguagem.(...)
Tomando como ponto de partida três grandes tipos de signos, visão pautada na divisão semântica, sintaxe e pragmática preconizada pelos semiólogos e semioticistas, Philippe Hamon define três tipos principais de personagens:
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Personagens "referenciais": são aquelas que remetem a um sentido pleno e fixo, comumente chamadas de personagens históricas. Essa espécie de personagem está imobilizada por uma cultura, e sua apreensão e reconhecimento dependem do grau de participação do leitor nessa cultura.
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Personagens "embrayeurs": são as que funcionam como elemento de conexão e que só ganham sentido na relação com outros elementos da narrativa, do discurso, pois não remetem a nenhum signo exterior.
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Personagens "anáforas": são aquelas que só podem ser apreendidas completamente na rede de relações formada pelo tecido da obra. Diadorim, de Grande sertão: veredas, poderia estar nesta categoria.

Especialmente nas obras Sémantique Structurale e Du sens, Greimas substitui a designação personagem por ator, referindo com este termo a "unidade lexical do discurso", cujo conteúdo semântico mínimo é definido pelos semas (unidades de significação): entidade figurativa, animado, susceptível de individualização.

Além disso, Greimas distingue ator de actante, uma espécie de arquiator, conceito situado num nível superior de abstração e que, por essa razão, pode expressar-se em vários atores numa mesma narrativa. Para Greimas, existem seis actantes: sujeito, objeto, destinador, destinatário, opositor e adjuvante. E as relações estabelecidas entre os actantes, numa dada narrativa, constituem o modelo actancial.
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