sexta-feira

HOMENZINHO

de Valmor Bordin 
   Um inseto que dormia debaixo da casca de uma palmeira, um dia acordou. Escorregou pela folha, e caiu no cálice de um cogumelo.
     Pronto! — estava transformado num homenzinho.
     Pesou no seu pequeno pescoço uma cabeça sem firmeza e sentiu a obrigação de criar um novo mundo. As lembranças desmanchavam devoradas pelos cupins.
     Um homem se criava, e sem saber o porquê, uma imensa tristeza inundava sua alma derramada num turbilhão de idéias confusas.
     Foi um inseto que vivia na quietude de um abismo cheio de ossadas humanas, velhas bacias de esmalte enferrujado, borboletas e girassóis.
     Nada conhecia o homenzinho recém-nascido. Sua vida era um sonho que ao dormir estava desperto e ao despertar adormecia. Jamais poderia imaginar que nada torna um homenzinho tão solitário como a desgraçada capacidade de enxergar as coisas.
     Compreendendo a vida aos poucos, tentou voar até um pessegueiro em flor, como um inseto, mas seus braços desajeitados golpeavam o ar e as mãos estalavam no peito e no rosto.
     Descobriu-se nu em pelo, a primeira vez, e cobriu o sexo com as mãozinhas. Caminhando sobre duas pernas e uma posição vertical, que deixava seu corpo esgotado e cheio de uma pureza tímida, tentou engatinhar, mas os joelhos e as mãos sangraram.
    Uma orquídea despencou de uma árvore e grudou em suas costas. Era um homenzinho recém-criado compreendendo aos poucos a matemática da vida.
     Descobriu um outro mundo, sentindo saudade da vida antiga quando tinha medo do sapo glutão que estendia a língua enorme, inchando o papo antes de engolir o inseto.
     Um vazio inteiro invadiu seu peito. Nostálgico, não via mais o sapo, só um pedaço dele, sua metade. A metade da palavra que se criava dentro de sua consciência. Pensou que só um inseto poderia entender o que se passa na língua de um sapo.
     Enquanto a dúvida roia, o homenzinho equilibrou a orquídea nas costas. Caminhou pelas montanhas. Pelas estradas, rios e florestas. Machucou os pés tropeçando nas pedras, lambuzou o rosto caindo no pântano, fechou os olhos quando viu a luz e abriu quando viu a sombra — resquício da sua vida de inseto.
     Porém, tinha novos sentidos. Novas antenas e olhos que não mais teriam o olhar em xadrez. Viu na lagoa uma estranha imagem. Um pássaro enorme matava a fome palitando os dentes de um velho boi morrente.
     Numa certa altura do seu andar pensou:
     — Não, senhor Sartre, o senhor não tem razão. O inferno não são os outros. E você Gregor Samsa, agradeça a Kafka. Pelo menos você encontrou a sola do sapato de um pai para te esmagar. Não tive a mesma sorte. Estou condenado a viver levando dentro de mim cicatrizes, arranhões e uma mancha de sangue no meu pé esquerdo aleijado, correndo sem parar. Fui um inseto grudado numa árvore, vivendo de sugar as gotinhas de sangue dos animaizinhos que passavam, e, assim me esquivei de uma porção de desgraças. Fui poupado do grito do nascimento, do lamento do peixe fisgado no grande rio, mas fui levado pela mão moderna ao cadafalso.
     Era um inseto que dormia no oco de uma árvore, que a vida oferecia tudo naquela hibernação. Um pequeno e horrível inseto redondo, de corpo marrom-acizentado. Liso e duro. Esperando que a seiva do galho ou o sangue do boi pastando fluísse dentro dele. De propósito, ficava pequeno e quase invisível para que ninguém visse seu corpo. Temendo que um palmo de mãos espalmadas, batendo em salvas o esmagasse. Era um solitário inseto recolhido em si mesmo, escondido em sua casca, tentava sugar os animais que passavam na sua frente. Que um dia, de tanto dormir, caiu no cálice de um cogumelo, esperando que o acaso o conduzisse à seiva, ou quem sabe à casa alheia.
     Um desfile de borboletas, abelhas e formigas com suas cores misturadas, prestavam atenção ao seu corpo animal quase humano correndo desesperado.
     O homenzinho olhava para trás, e via no rastro da dura travessia, o pé da floresta chorando no meio do silencioso deserto vegetal. De vez em quando, um grupo de fungos e bactérias congregava-se sobre uma folha e recuperava o sal do suor caído do rosto do homenzinho.
     — Ah! Fungos e bactérias. Malditos parasitas. Pensou o homenzinho enquanto corria pisando em lagartixas e vermes.
     Um grupo de formigas aglomerou-se ao redor de uma gota de sangue, do machucado do seu pé e fez um banquete. Beberam como quem bebe um bom sangue, caindo como migalha de pão —devoram o cadáver de uma borboleta. Eram daquelas formigas que tinham um faro pelo sangue.
     O homenzinho chegou numa pequena propriedade rural, cheia de poça d’água, arados velhos, enxadas imprestáveis, cangas apodrecendo, carroças minguando e aspas de bois enterradas. Um cachorro o espreitava embaixo de um limoeiro.
     Encontrou uma casinha de tábuas. Um suor pegajoso escorria de suas costas servindo de pasto para os mosquitos que saltavam das telhas. Afugentou-os, agitando a cabeça.
     Bateu palmas. Ninguém ouviu. Bateu as mãos novamente, e como ninguém deu resposta, abriu a porta e caminhou até pousar a mão no ombro de um homem velho. Percorreu aquele corpo até repousar os dedos no peito. Sentiu um marcapasso batendo desordenado. Tropeçou numa mulher grávida que não produzia leite algum. Olhou para aquela barriga e pensou que também poderia ter uma mãe.
     Então gritou:
     — Onde está você, mamãe?
     Porém, entre ele e aquela mãe, havia um grupo de oito abismos. Era um pobre homenzinho misturado dentro daquela casa.
     Correu atravessando o corredor e escondeu-se atrás de uma porta. Um grupo de pessoas, ao redor de uma mesa, conversava assuntos importantes a respeito da sobrevivência humana. Um homem usando uma lupa colada ao olho, falava:
     —Uma girafa pode limpar as próprias orelhas com a língua. A escova de dente, azul, é mais usada que a vermelha. O porco é o único animal que queima ao sol, além do homem. Os olhos de um hamster podem cair se ele for pendurado de cabeça para baixo. O golfinho dorme com um olho aberto. Um em cada três sorvetes vendidos no mundo é de baunilha. Os chimpanzés são capazes de se reconhecer diante do espelho. É possível conduzir uma vaca escada acima, mas não escada abaixo. Ninguém consegue lamber o próprio cotovelo porque é impossível tocá-lo com a própria língua. Não dá para cometer suicídio parando a própria respiração. Os insetos domésticos vivem apenas duas semanas. O quá-quará-quá-quá de um pato não produz eco e ninguém sabe explicar o porquê.
     O homenzinho ouviu a batida do cuco do relógio e lembrou da sua infância de inseto. Estranhou que todas aquelas tivessem os joelhos grudados à mesa, impedidas de se levantar. Elas almoçavam um banquete de ossos, rins e fígado.
     Observou a fumaça fumegando da chaminé, depois correu porta afora. O que acontecia naquele lugar era segredo dos que estavam lá.
     Percebeu que deveria viver com um sentimento chamado solidão, alfinetando seu pé viajor, mas não tinha a menor idéia onde poderia abrigá-lo. A orquídea aos poucos encontrava morada em suas costas.
     Alguma coisa palpitava dentro do seu peito, — era um coração humano. Sentiu um líquido deslizar pelo rosto. Naquele momento descobriu a lágrima .
     Foi invadido pela solitária necessidade de falar com o filho do Nosso Senhor, mas como ele não estava ao seu alcance, chamou de Menino Jesus ao inseto desamparado que dormia escondido na casca de uma palmeira.

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