segunda-feira

DECALÓGO DO LEITOR
Por Alberto Mussai
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I. Nunca leia por hábito: um livro não é uma escova de dentes. Leia por vício, leia por dependência química. A literatura é a possibilidade de viver vidas múltiplas, em algumas horas. E tem até finalidades práticas: amplia a compreensão do mundo, permite a aquisição de conhecimentos objetivos, aprimora a capacidade de expressão, reduz os batimentos cardíacos, diminui a ansiedade, aumenta a libido. Mas é essencialmente lúdica, é essencialmente inútil, como devem ser as coisas que nos dão prazer.
II - Comece a ler desde cedo, se puder. Ou pelo menos comece. E pelos clássicos, pelos consensuais. Serão cinqüenta, serão cem. Não devem faltar As mil e uma noites, Dostoiévski, Thomas Mann, Balzac, Adonias, Conrad, Jorge de Lima, Poe, García Márquez, Cervantes, Alencar, Camões, Dumas, Dante, Shakespeare, Wassermann, Melville, Flaubert, Graciliano, Borges, Tchekhov, Sófocles, Machado, Schnitzler, Carpentier, Calvino, Rosa, Eça, Perec, Roa Bastos, Onetti, Boccaccio, Jorge Amado, Benedetti, Pessoa, Kafka, Bioy Casares, Asturias, Callado,Rulfo, Nelson Rodrigues, Lorca, Homero, Lima Barreto, Cortázar, Goethe, Voltaire, Emily Brontë, Sade, Arregui, Verissimo, Bowles, Faulkner, Maupassant, Tolstói, Proust, Autran Dourado, Hugo, Zweig, Saer, Kadaré, Márai, Henry James, Castro Alves.
III - Nunca leia sem dicionário. Se estiver lendo deitado, ou num ônibus, ou na praia, ou em qualquer outra situação imprópria, anote as palavras que você não conhece, para consultar depois. Elas nunca são escritas por acaso.
IV - Perca menos tempo diante do computador, da televisão, dos jornais e crie um sistema de leitura, estabeleça metas. Se puder ler um livro por mês, dos 16 aos 75 anos, terá lido 720 livros. Se, no mês das férias, em vez de um, puder ler quatro, chegará nos 900. Com dois por mês, serão 1.440. À razão de um por semana, alcançará 3.120. Com a média ideal de três por semana, serão 9.360. Serão apenas 9.360. É importante escolher bem o que você vai ler.
V - Faça do livro um objeto pessoal, um objeto íntimo. Escreva nele; assinale as frases marcantes, as passagens que o emocionam. Também é importante criticar o autor, apontar falhas e inverossimilhanças. Anote telefones e endereços de pessoas proibidas, faça cálculos nas inúteis páginas finais. O livro é o mais interativo dos objetos. Você pode avançar e recuar, folheando, com mais comodidade e rapidez que mexendo em teclados ou cursores de tela. O livro vai com você ao banheiro e à cama. Vai com você de metrô, de ônibus, e de táxi. Vai com você para outros países. Há apenas duas regras básicas: use lápis; e não empreste.
VI - Não se deixe dominar pelo complexo de vira-lata. Leia muito, leia sempre a literatura brasileira. Ela está entre as grandes. Temos o maior escritor do século XIX, que foi Machado de Assis; e um dos cinco maiores do século XX, que foram Borges, Perec, Kafka, Bioy Casares e Guimarães Rosa. Temos um dos quatro maiores épicos ocidentais, que foram Homero, Dante, Camões e Jorge de Lima. E temos um dos três maiores dramaturgos de todos os tempos, que foram Sófocles, Shakespeare e Nelson Rodrigues.
VII - Na natureza, são as espécies muito adaptadas ao próprio hábitat que tendem mais rapidamente à extinção. Prefira a literatura brasileira, mas faça viagens regulares. Das letras européias e da América do Norte vem a maioria dos nossos grandes mestres. A literatura hispano-americana é simplesmente indispensável. Particularmente os argentinos. Mas busque também o diferente: há grandezas literárias na África e na Ásia. Impossível desconhecer Angola, Moçambique e Cabo Verde. Volte também ao passado: à Idade Média, ao mundo árabe, aos clássicos gregos e latinos. E não esqueça o Oriente; não esqueça que literatura nenhuma se compara às da Índia e às da China. E chegue, finalmente, às mitologias dos povos ágrafos, mergulhe na poesia selvagem. São eles que estão na origem disso tudo; é por causa deles que estamos aqui.
VIII - Tente evitar a repetição dos mesmos gêneros, dos mesmos temas, dos mesmos estilos, dos mesmos autores. A grande literatura está espalhada por romances, contos, crônicas, poemas e peças de teatro. Nenhum gênero é, em tese, superior a outro. Não se preocupe, aliás, com o conceito de gênero: história, filosofia, etnologia, memórias, viagens, reportagem, divulgação científica, auto-ajuda – tudo isso pode ser literatura. Um bom livro tem de ser inteligente, bem escrito e capaz de provocar alguma espécie de emoção.
IX - A vida tem outras coisas muito boas. Por isso, não tenha pena de abandonar pelo meio os livros desinteressantes. O leitor experiente desenvolve a capacidade de perceber logo, em no máximo 30 páginas, se um livro será bom ou mau. Só não diga que um livro é ruim antes de ler pelo menos algumas linhas: nada pode ser tão estúpido quanto o preconceito.
X - Forme seu próprio cânone. Se não gostar de um clássico, não se sinta menos inteligente. Não se intimide quando um especialista diz que determinado autor é um gênio, e que o livro do gênio é historicamente fundamental. O fato de uma obra ser ou não importante é problema que tange a críticos; talvez a escritores. Não leve nenhum deles a sério; não leve a literatura a sério; não leve a vida a sério. E faça o seu próprio decálo.
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DECÁLOGO DO AUTOR
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Por Miguel Sanches Neto
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Depois de leitor, você pode se tornar, então, escritor– embora, pasme, muitos hoje pulem a leitura, por julgá-la dispensável, e já desejem publicar.
I - Não fique mandando seus originais para todo mundo.Acontece que você escreve para ser lido extramuros, e deseja testar sua obra num terreno mais neutro. E não quer ficar a vida inteira escrevendo apenas para uma pessoa. O que fazer então para não virar um chato? No passado, eu aconselharia mandar os textos para jornais e revistas literárias, foi o que eu fiz quando era um iniciante bem iniciante. Mas os jovens agora têm uma arma mais democrática. Publicar na internet. Há muitos espaços coletivos, uma liberdade de inclusão de textos novos e você ainda pode criar seu próprio site ou blog, mas cuidado para não incomodar as pessoas, enviando mensagens e avisos para que leiam você.
II - Publique seus textos em sites e blogs e deixe que sigam o rumo deles. Depois de um tempo publicando eletronicamente, você vai encontrar alguns leitores. Terá de ler os textos deles, e dar opiniões e fazer sugestões, mas também receberá muitas dicas.
III - Leia os contemporâneos, até para saber onde é o seu lugar. Existe um batalhão de internautas ávidos por leitura e em alguns casos você atingirá o alvo e terá acontecido a magia de um texto encontrar a pessoa que o justifica. Mas todo texto escrito na internet sonha um dia virar livro. Sites e blogs são etapas, exercícios de aquecimento. Só o livro impresso dá status autoral. O que fazer quando eu tiver mais de dois gigas de textos literários? Está na hora de publicar um livro maior do que Em busca do tempo perdido? Bem, é nesse momento que você pode continuar sendo um escritor iniciante comum ou subir à categoria de iniciante com experiência. Você terá que reduzir essas centenas e centenas de páginas a um formato razoável, que não tome muito tempo de leitura de quem, eventualmente, se interessar por um livro de estréia. Para isso,você terá de ser impiedoso, esquecer os elogios da mulher e dos amigos e selecionar seu produto, trabalhando duro para que fique sempre melhor.
IV - Considere apenas uma pequenina parte de toda a sua produção inicial, e invista na revisão dela, sabendo que revisar é cortar. O livro está pronto. Não tem mais do que 200 páginas, você dedicou anos a ele e ainda continua um iniciante. Mas um iniciante responsável, pois não mandou logo imprimir suas obras completas com não sei quantos tomos, logo você que talvez nem tenha completado 30 anos. Mas você quer fazer circular a sua literatura de maneira mais formal. Quer o livro impresso. E isso é hoje muito fácil. Você conhece um amigo que conhece uma gráfica digital que faz pequenas tiragens e parcela em tantas vezes. O livro está pronto. E anda sobrando um dinheirinho, é só economizar na cerveja.
V - Gaste todo seu dinheiro extra em cerveja, viagens, restaurantes e não pague a publicação do próprio livro. Se você fizer isso, ficará novamente ansioso para mandar a todo mundo o volume, esperando opiniões que vão comparar o seu trabalho ao dos mestres. O livro impresso, mesmo quando auto-impresso, dá esta sensação de poder. Somos enfim Autores. E podemos montar frases assim: Borges e eu valorizamos o universal. Do ponto de vista técnico, Borges e eu estamos no mesmo nível: produzimos obras impressas; mas a comparação não vai adiante. Então como publicar o primeiro livro se não conhecemos ninguém nas editoras? E aí começa um outro problema: procurar pessoas bem postas em editoras e solicitar apresentações. Na maioria das vezes isso não funciona. E, mesmo quando o livro é publicado, ele não acontece, pois foi um movimento artificial.
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DECÁLOGO DO CRÍTICO
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Por Michel LaubLer
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Por obrigação, ganhar pouco, ser odiado por autores criticados ou ignorados por você. Ante tantos dissabores, saiba para que serve, afinal, fazer crítica literária.
I - Um bom começo pode ser a leitura de O imperador do vinho, de Elin McCoy, a biografia do americano Robert Parker. Trata-se da figura mais polêmica do universo milionário da enologia. Uma nota alta na The Wine Advocate, sua newsletter, é capaz de enriquecer um fabricante; uma nota baixa pode significar a falência. O olfato de Parker é segurado em cerca de US$ 1 milhão. Ao longo dos anos, percebeu-se que ele gostava de vinhos frutados. Muitas propriedades, até algumas tradicionais da França, passaram a chamar especialistas para estudar o solo, mudar a forma do plantio e da colheita, tudo para colher uvas que originassem vinhos adequados a esse gosto.
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II - Saiba que esse talvez seja o exemplo máximo de crítico bem-sucedido no mundo de hoje – rico de fato, influente de fato, uma presença de fato essencial em seu meio. Quase todos os outros profissionais da categoria, trabalhem eles com música, cinema, gastronomia, televisão ou concursos de beleza, estão bem mais próximos da figura descrita por George Orwell em Confissões de um resenhista: “Trinta e cinco anos, mas aparenta cinqüenta(...) [trabalha num] conjugado frio, mas abafado (...). Dos milhares de livros que aparecem todo ano, é quase certo que existam 50 ou 100 sobre os quais teria prazer em escrever. Se for de primeira categoria na profissão, pode conseguir dez ou vinte. É mais provável que consiga dois ou três”.
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III - Ou seja, prepare-se para uma atividade enfadonha e mal-remunerada. Você lerá só por obrigação. Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, não há nada a dizer sobre ele. Porque sempre haverá o que dizer. Se não houver, as contas não são pagas.
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IV - Não se preocupe, porém. Há muitos truques para encher essas páginas em branco. Se você quer desancar um livro e não sabe como, recorra a alguns adjetivos algo abstratos em se tratando de literatura, mas ainda assim úteis numa resenha. A timidez, por exemplo. Argumente que o autor não explora suficientemente os conflitos de sua obra. Afinal, explorar conflitos é uma tarefa que não tem fim, e há um momento em que todo autor, por mais extrovertido que seja, precisa parar. Outros chavões sempre à mão: excesso de objetividade,excesso de subjetivismo, excesso de frieza, excesso de dramaticidade. A categoria das “idéias fora de lugar”, deslocada de seu contexto original, também ajuda bastante. Um romance correto, instigante e envolvente pode ser atacado por reproduzir um modelo “burguês” de contar histórias, incompatível com o nosso tempo. Um romance sem essas características pode ser destruído, justamente, por ser mal-escrito e não envolver o leitor.
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V - Para o caso contrário, isto é, se você quer elogiar um livro que acha ruim – o das linhas finais do item IV, por exemplo –, há dois recursos clássicos: a) em relação à prosa desagradável, escatológica e/ou ilegível, diga que ela reproduz o incômodo e a irredutibilidade de sentidos do mundo contemporâneo; b) em relação à trama caótica e fragmentária, quando não se entende o que é início, o que é fim e do que é mesmo que estamos falando, afirme que a maçaroca reproduz, como uma “metáfora estrutural”, o caos fragmentário da sociedade pós-industrial.
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VI - Usando desses truques, você está pronto para fazer nome devido à afinação com o vocabulário crítico de sua época. Mas se, por um desses acasos raros, você está decidido a realmente dizer o que pensa, há também dois caminhos a seguir. O primeiro é confiar cegamente nos seus juízos pessoais, não temendo a exposição de seus preconceitos íntimos em público. Assim, você terá mais chances de ser considerado um sujeito ranheta, excêntrico e/ou pervertido.
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VII - O segundo caminho é considerar-se portavoz de um “sistema”, para o qual são válidas mesmo obras que não são do seu agrado (por questões sociológicas, por exemplo). Mesmo que os motivos sejam nobres – sua humildade para não se considerar o juiz definitivo sobre o que é ou não relevante em termos estéticos –, há boas probabilidades de você ser visto como um crítico sem alma, sem coragem, sem graça.
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VIII - Independentemente de sua escolha, é inevitável que você seja desprezado. Todos dirão que seu desejo secreto era ser ficcionista ou poeta, que você é leviano demais, complacente demais, que tem algum interesse obscuro – ascender na carreira, agradar aos pares da universidade, arrumar um(a) namorado(a) – ou está a soldo de alguma entidade obscura – grupos literários rivais, editores, maçons, seitas religiosas, partidos políticos de esquerda (se você escrever numa pequena publicação) ou de direita (se receber salário de alguma corporação de mídia).
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IX - Mais que isso: você será odiado. Pelos autores que você desanca. Pelos autores que você ignora. Pelos autores que você elogia (os motivos serão sempre os errados, na opinião deles). Pelos outros críticos. Por boa parte do público, mesmo por aquele que o lê com freqüência.
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X - Mas se, apesar de tudo isso, você ainda insiste em abraçar a profissão, é bom se perguntar o motivo. Quando criança, usando o olfato, Robert Parker era capaz de listar todos os ingredientes dos pratos que estavam sendo cozinhados na vizinhança, habilidade que o tornaria um campeão absoluto dos “testes cegos” de identificação de uvas e safras. Isso se chama vocação. É o seu caso? Você se sente preparado para conjugar erudição e capacidade interpretativa em tamanha escala? Sendo a resposta afirmativa, trata-se de uma ótima notícia. Não só para você, que talvez tenha achado um modo honesto de ganhar a vida, mas para o próprio meio literário. Porque não há nada de que ele necessite mais, hoje ou em qualquer tempo: alguém que o ajude a firmar tendências, corrigir rumos, separar o joio do trigo. Diferentemente do que se diz, um crítico autêntico não é apenas o advogado do público. Ele é, em última instância, o maior defensor da própria literatura.