segunda-feira


Matéria da Revista Vida Simples
(Novembro de 2007)
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Fiés ao sonho A luta pela vocação na trajetória de quatro destacados escritoresbrasileiros contemporâneos. Inspire-se com eles e corra atrás daquilo quedeixa você realmente feliz .
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(por Fabrício Carpinejar)
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Escritor não nasce pronto. A profissão “escritor” não consta em testevocacional nas universidades. No máximo, verifica-se uma inclinação àsLetras do vestibulando. E parece relativamente fácil ser escritor: boasidéias, caneta e papel (ou um bom processador de textos no computador). Mascomo alguém pode adivinhar se é destinado para aquilo? Qual é o segredo paradeixar uma carreira estável ou um emprego seguro para se enfurnar emescrever e escrever histórias atravessando madrugadas e manhãs secretamente,sem nenhuma testemunha? Digitar um punhado de páginas, imprimir, encaixar asfolhas numa espiral preta, enviá-las para uma editora e sentir um misto deorgulho e medo. Orgulho porque é seu primeiro livro, medo porque não temcerteza se o esforço valeu a pena. Trabalhar e trabalhar, longe de umarecompensa imediata. O que faz alguém acordar de manhã e dizer para simesmo: “Eu sou escritor”? Conheça o que dizem alguns autores brasileirosque, a muito custo, conseguiram se impor no cenário das letras. E aprenda alutar pelos seus sonhos (quaisquer que sejam eles), como eles um diafizeram. Cara sortudo?Ao tomar nas mãos um livro como os contos de Os Lados do Círculo, de AmilcarBettega Barbosa, 43 anos, nem se imagina quanto o escritor penou para estarno topo de uma pilha de volumes na livraria. Tampouco que seu autor recebeua bagatela de 100 mil reais pela obra no prestigiado Prêmio Portugal Telecomem 2005. Mas a predisposição é comentar: “Cara sortudo!” Porém, esse mesmoautor, tão bem resolvido na pequena biografia da orelha do livro, dono de umsorriso cativante na fotografia da aba, poderia ser encontrado atendendo osfregueses do sebo Ao Pé da Letra, em Porto Alegre, no início dos anos 90. Em1994, Amilcar estava do outro lado de um guichê do Banco do Brasil. Passamais um tempo, está vendendo seguros. Outro tanto e o autor chegou a ganhara vida como recepcionista de um hotel na costa lusitana. Amilcar ainda foi engenheiro civil, profissão que exerceu por cinco anos,fez peritagens em obras no interior gaúcho, sempre escrevendo no tempo vago.Até conseguir se impor no cenário literário, ele demorou muito. Muito mesmo.Como ele relata: “Perdi a conta de quantas editoras para as quais mandei olivro. Foi recusado por todas, até que deixei de lado a idéia da publicaçãoe me concentrei num outro livro, que terminei, enviei à editora e foiaprovado. Só depois de publicado esse livro (que na verdade era meu terceiroescrito) é que voltei àquele segundo, o entravado, Os Lados do Círculo.Retrabalhei o livro, propus de novo à editora, que o publicou. E o livroacabou ganhando o grande prêmio, não é incrível?” Nasceu pra coisa?Sim, a literatura é incrível, e o que há por detrás dela mais ainda. Vá atésua livraria predileta. Ali, poderá observar uma trinca de volumes de capapreta sob o título em relevo de Inferno Provisório. Romances! O autor é LuizRuffato. Poucas informações a seu respeito. É mineiro, tem 46 anos. Mas, aodedilhar suas obras anteriores, o leitor destrinchará um punhado de prêmioscomo da Associação Paulista dos Críticos de Arte (três vezes) e Machado deAssis, da Fundação Biblioteca Nacional. Além disso, o sujeito inspirou umapeça de teatro e está editado na Itália, França e Espanha. Mas Ruffato, acredite, já foi ajudante de pipoqueiro e vendedor dequebra-queixo aos 6 anos de idade. Depois, pela ordem, atuou como caixeirode botequim, balconista de armarinho, operário têxtil (do setor de algodãohidrófilo), torneiro-mecânico, jornalista, sócio de uma assessoria deimprensa, gerente de lanchonete, vendedor de livros autônomo. E desde 2003vive apenas da literatura. Ruffato diz que não deseja mais nada, por isso é capaz de desejar tudo. Quea pretensão dos seus pais, semianalfabetos e pobres de Cataguases (MG), eraque ele se transformasse em torneiro-mecânico. “Eu superei qualquerexpectativa”, confessa. “Na minha casa havia um único livro, a Bíblia, domeu pai evangélico. Eu só vim a ser apresentado a um livro quando tinha uns14 anos, e por acaso. Um dia, meu pai conseguiu uma vaga para mim numaescola boa da cidade, onde estudavam os ricos. Eu me sentia um completoestranho no meio daquelas pessoas todas e então passei, por timidez e porexclusão, a circular pela biblioteca, como meio de fuga. Entrava e ficavaperambulando por entre as mesas e cadeiras. Até que um dia a bibliotecáriame entregou um livro e eu não tive coragem de recusar. Levei-o para casa,li, fiquei doente e daí para a frente passei a ser um voraz e onívoroconsumidor de livros”, afirma. Fama instantânea?Autor de Cinzas do Norte, que vendeu 15 mil exemplares e recebeu os prêmiosJabuti, Portugal Telecom, Bravo! e APCA, o amazonense Milton Hatoum, 55anos, navega numa maré boa de superlativos. Mas nem sempre a vida lhe sorriuassim. Sua consagração atual esconde uma luta incansável, e nada vã, com aspalavras. Ele só conseguiu publicar em 1989 (aos 37 anos, portanto).Tratava-se do elogiado romance Relato de um Certo Oriente, que imediatamenteconquistou os leitores mais exigentes. Antes, Hatoum estudou arquitetura na USP, estagiou numa construtora,lecionou em faculdade do interior de São Paulo, envolveu-se em projetosarquitetônicos na década de 70, colaborou com a seção de cultura da revistaIstoÉ, morou mais de quatro anos na Europa. De 1985 a 1999, entrava em salade aula como pacato professor da Universidade Federal do Amazonas. Passoualgumas temporadas na Califórnia, onde conduziu atividades na Universidadede Berkeley. Nada mal para quem fez bicos inimagináveis na Espanha, como cantar nascalçadas de Madri. Ao lado de uma exilada argentina, Hatoum entoava algunsclássicos da MPB para completar o orçamento. “A gente aprende com os erros.Não há nada mais humano que o fracasso. Aprendi a dialogar. Escrevo ummanuscrito e dialogo com os editores, os amigos. E aprendo com eles. Achoque ninguém sabe o que vai acontecer com um livro. É um grande mistério. Àsvezes é um fracasso total, outras vezes pode cair nas graças do bom leitor.E não há prêmio que substitua um bom leitor, porque ele justifica aliteratura. Não esperava ser lido por um grande número de leitores, e issoestá acontecendo com o Dois Irmãos. Pensava que minha mãe seria a únicaleitora. E ela, ao contrário, tinha certeza de que meus livros seriamsucesso de público e crítica. Quis saber por que, e ela respondeu: ‘Vocênunca vai saber o que é intuição de mãe’,” afirma ele. Trabalho fácil?Teimosia é confiança no talento. O escritor gaúcho Charles Kiefer, 48 anos,literalmente correu atrás da máquina. Foi motorista de caminhão, bancário,jornalista, passador de sinteco, vendedor de enciclopédia, datilógrafo,radialista, funcionário de cooperativa agrícola, assessor editorial,instrutor de oficinas literárias, secretário de Cultura de Porto Alegre esub-secretário de Cultura do estado do Rio Grande do Sul. Kiefer já vendeu mais de 100 mil exemplares de sua novela Caminhando naChuva. Ganhou alguns Jabutis. Outros livros seus viraram argumentos parafilmes. Sua ascensão contou com a solidariedade generosa da namorada, naépoca em que vendia peixes de porta em porta. A mãe de sua primeira filhafingia que não reparava em seu insuportável cheiro de cardume. Hoje ele nãocheira mais a mar, mas não abdica de nenhuma das experiências anteriores queo ajudaram a elaborar personagens. Outrora colono da pacata cidade de Três de Maio, nos rincões gaúchos,Charles Kiefer hoje ensina criação literária a aspirantes a escritores naPUC de Porto Alegre. É capaz de falar com propriedade da importância departir para a rua e conhecer o mundo como ele é. “Tenho um romance, Valsapara Bruno Stein, que agora virou filme, que se passa numa olaria. Todomundo me pergunta como é que sei tanto sobre o processo de industrializaçãoprimitivo de uma olaria. Ora, entre os muitos trabalhos que fiz na vida, umdeles foi trabalhar em olaria, cortando barro, gradeando tijolos, enfornandotijolos, queimando tijolos e, finalmente, transportando os tijolos prontosnum velho caminhão F-600. A viagem do escritor tem 5 mil quilômetros, mas épreciso dar o primeiro passo. Se eu escrevesse para ganhar dinheiro, játeria desistido. Eu escrevo para salvar a mim mesmo”, afirma.
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Para saber mais
Livros:
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• Os Lados do Círculo, Amilcar Bettega Barbosa, Companhia das Letras
• Inferno Provisório, (3 volumes), Luiz Ruffato, Record
• Dois Irmãos, Milton Hatoum, Companhia das Letras
• Caminhando na Chuva, Charles Kiefer, Ática